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Quinta-feira, 11/8/2016
Existe na cidade alguém, assim como você...
Elisa Andrade Buzzo

Existe alguém na cidade que, assim como você, usa óculos de vez em quando. Isso porque prefere agora manter a vida meio que low profile, tentando se esmaecer numa multidão distorcida pelo astigmatismo. E que caminha, observando as coisas, as casas, os jardins, e ao mesmo tempo talvez olhando para nada, apenas para algo dentro. E presta atenção quando fala com alguém, olha no olho. O que pode ser perigoso. Existe na cidade alguém que frequenta os mesmos cinemas, se forem de rua, melhor. E se interessa, assim como você, pelos mesmos filmes, logicamente. Em geral, são sessões vazias, quase que exclusivas, mas esse alguém, como você, acha que os ingressos vão se esgotar. E quando entra na sala vazia, toma um susto em ver que The Red Shoes, Les trois coulers, Grande Otelo e alguns bons egípcios e nacionais não causam burburinho em quaisquer corações. Alguém, como você, existe na cidade e te olha assim como ele te observa num relance de caminhada. Tudo não passa de um lampejo, que mais poderia se parecer com o reflexo de um espelho que logo esvoaça. Você vê muito tranquilo Di Cavalcanti sozinho na galeria de arte, quando alguém como você aparece e fica te olhando meio que narcisisticamente, isto é, como se admirasse seu próprio reflexo. Então você repara que esse alguém não é bem como você, aqui houve um engano. Daí alguém está na sessão masculina de cachecóis e lenços, que é para aonde você está indo. Para que não haja um encontro, você finge que olhas umas camisetas até esse alguém sair de lá. E, como irmãos desconhecidos, saem com o mesmo cachecol leve de petit poits.

E se às vezes tem uma sede de tudo, que venham as paisagens, os livros, os diferentes perfumes; também igualmente um cansaço, uma vontade de nada, uma infinda desistência. Alguém, assim como você, é frenético, dinâmico, decidido, ultrapassa qualquer atleta olímpico enquanto percorre a cidade. Assim, algumas vezes, apostam corrida como cavalos gêmeos numa biga. Mas observam com minúcia as galinhas em parque rural. Encontram todo o tempo do mundo para se infiltrar pelas alamedas luxuriosas, onde há água e sombras. E nelas você e um alguém parecido com você podem se entrecruzar sem medo, protegidos pelo doce anonimato das sensações do tempo. E nos museus, nas lanchonetes, nos quilos vegetarianos, nas lojas de departamento, nos shoppings centers, nas livrarias, nas escadarias do metrô, nas ruas do centro da cidade, nas salas de teatro, nas academias de ginástica e escolas de dança, nas piscinas e nos parques públicos você encontra alguém, assim como você, cada vez menos. Há poucos de você, e eles mal se encontram. Ninguém está a fim de forçar um encontro, e a voz está cansada quando alguém como você quer falar, elétrica quando o silêncio impera. Existe na cidade alguém assim como você, que não precisa de você; nem nunca precisará. Assim como você definitivamente não precisa desse alguém. São vidas correndo independentes. Chamas em um mesmo velário. E vivamos, tão bem ou tão mal como seria de repente com você, como alguém.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 11/8/2016

 
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