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Terça-feira, 9/5/2017
A entranha aberta da literatura de Márcia Barbieri
Jardel Dias Cavalcanti



Acaba de ser publicado pela editora Patuá, de São Paulo, o terceiro romance de Márcia Barbieri: O Enterro do Lobo Branco. Entre 2013 e 2014 a autora publicou, respectivamente, Mosaico de Rancores e A Puta, ambos pela editora Terracota. Mosaico de Rancores foi publicado também em edição alemã, pela Clandestino Publikationen.

Em todos os seus livros, Barbieri está pondo à prova os limites da linguagem, usando para isso o corpo, o desejo, a perversão, as relações humanas desnorteadas. Trata-se, pode-se dizer, de um romance erótico-existencial, talvez até pornográfico (segundo Alain Robert-Grillet, “pornografia é o erotismo dos outros”). No entanto, o erotismo, esse lugar fora do lugar, é quem, por força da descrição de sua prática na literatura de Barbieri, tem uma função mais do que de produzir prazer no leitor, é ele que obriga a linguagem a romper com o discurso tradicional, levando-a a lugares inesperados.

Servir-se de uma prática “que não tem juízo nem nunca terá”, o sexo livre e perverso, faz a literatura perder também suas estribeiras produzindo um discurso molhado na libido da linguagem (Barthes). A narrativa tradicional não suportaria as descrições sensuais, brutais e libidinosas da literatura de Barbieri. É preciso abolir pontos, vírgulas, deslizando-se por zonas obscuras de descrições que vão além do simples agrupamento de fatos. É preciso estar no caldeirão das forças irracionais do pesadelo, dos sonhos, dos desejos sofridos, para que a literatura se liberte das descrições prosaicas e alcance o reino da poesia.

Essa literatura não produz no crítico o desejo de resumo da obra. Seria trair o projeto da autora, trair sua poética aterradora, que fornece deleite no terror sobre-humano do desejo livre e na linguagem contemporânea do desvio. Não é à toa o aviso do editor de que em algumas passagens há desacordo com as normas padrão do português brasileiro. Não há língua que suporte a poesia e a “escritura fora do poder”.

A epígrafe de Nietzsche sobre o Eterno Retorno no romance é a pista mais clara para entender O Enterro do Lobo Branco.

Parafraseando o pensador alemão, a literatura de Barbieri produz “a existência em sua forma mais aterradora, a existência como ela é, sem objetivo nem significado, mas sempre repetida, sem um final no nada”. A literatura mais dura possível começou a existir, resta-nos criar a criatura que a aceitará alegre e felizmente.

Vale, nesse sentido, indicar a seguinte passagem do romance: “Haverá um tempo em que todo pensamento será tola pretensão as aranhas não tecerão mais suas teias não precisarão mais engolir insetos as opiniões cairão por terra e as sílabas bailarão libertas na saliva dos loucos e dos ladrões as letras seguirão aleatórias cartografia inusitadas a solidão reinará na cabeça dos poetas os escritores não procurarão nenhum vocábulo os discursos serão escritos sem discórdia sorriremos felizes porque nenhuma cabeça precisará ser arrancada para que as palavras encontrem a envergadura da linha reta.”

“Cadáveres não se arrepiam”, dirá Barbieri em outra passagem do livro. Talvez a sua literatura os faça tremer, descobrindo, como disse Kafka, “a alegria de imaginar uma faca dando voltas em meu coração”.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 9/5/2017

 
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