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Terça-feira, 20/2/2018
O Digestivo e o texto do Francisco Escorsim
Julio Daio Borges

Como sabem os que me conhecem, eu resisto muito a falar de mim e das coisas que eu fiz.

Como me disse ninguém menos que o filho da Pagu - uma das mulheres do Oswald de Andrade -, acho cabotino.

Mas numa época em que tudo é tão pessoal, e ser “marqueteiro” passou de defeito a qualidade, acabo perdendo oportunidades e ficando para trás.

Mas hoje - ao comentar o texto do Francisco Escorsim, “A influência de Paulo Francis” - “eu me permito”, como dizia aquele esquete de rádio - afinal, o texto me cita, e ao Digestivo.

Como são muitos aspectos, já aviso que a conversa vai ser longa...

*

Em primeiro lugar, vale um pedido de desculpas - público - ao Francisco Escorsim - porque eu estava morrendo de medo de ser confundido com “a nova direita”. Ou pior: temia que o Digestivo fosse associado a ela.

É verdade que eu me posicionei de 2014 para cá (e não me arrependo) - mas quem participou do Digestivo desde o começo, sabe como foi uma luta manter o site “neutro”.

Sim, fizemos alguns “Especiais” sobre eleições - mas eu nunca quis que o Digestivo tivesse uma postura editorial a favor (ou contra) alguém; mesmo Colunistas políticos; e, até, textos políticos (embora muitos tenham passado, é claro).

Pelo simples fato de que sempre tivemos Colaboradores de todos os matizes - e eu achava que, em matéria de jornalismo cultural, o site iria perder se abraçasse uma determinada corrente.

Embora meu posicionamento seja “de direita”, não deixo de admirar os inúmeros Colaboradores “de esquerda” que o Digestivo teve e que fizeram do site o que ele é.

*

O primeiro mérito no texto do Francisco é reconhecer o esforço do Digestivo em ser “suprapartidário”. Ou “pluralista”, como me disse uma vez uma Colunista.

E para encerrar o assunto política, eu temia a conexão que o Francisco poderia fazer entre o Digestivo e os Wunderblogs - mas, novamente, o Francisco acertou no que escreveu.

Nada contra os “Wunders” em si - ainda mais depois de tanto tempo -, mas os Wunderblogs foram, justamente, o que o Digestivo seria... se o site resolvesse ser abertamente político.

(Deixo o julgamento para o leitor que entende a diferença entre uma coisa e outra.)

*

E apenas para corrigir o que pode soar como pretensão minha (embora eu não tenha conseguido falar com o Francisco antes de o texto sair): os Colunistas Fabio Danesi Rossi, Paulo Polzonoff Jr. e Bruno Garschagen *não começaram* no Digestivo.

O Fabio, se não me engano, já tinha colaborado com a Revista da Folha. O Paulo já era fundador do jornal Rascunho, junto com o Rogério Pereira. E o Bruno já era jornalista da Gazeta Mercantil, onde tinha contato profissional com o Daniel Piza. Mesmo o Alexandre Soares Silva já tinha um livro publicado (sobre o qual, aliás, eu lhe sugeri um primeiro texto para o Digestivo...).

Talvez eles não tivessem tanta experiência “de internet” antes do Digestivo Cultural - mas isso é uma coisa que só eles podem responder...

Ou talvez, segundo o Francisco, eles não tivessem tanta *exposição*, em matéria de internet, antes do Digestivo Cultural. (OK, com isso eu posso concordar.)

*

E para encerrar as correções e os pedidos de desculpas, agradeço, publicamente, ao meu amigo Edu, Eduardo Andrade de Carvalho, por ter feito a “ponte”, entre mim e o Francisco, sugerindo-lhe a pauta (ainda que não tenhamos conseguido nos falar antes de o texto ir ao ar etc.).

*

Agora sendo bem pessoal mesmo (prepare-se): é estranho ler sobre você mesmo num texto - quando você já se encontra suficientemente deslocado no espaço e no tempo.

Para quem tem curiosidade, continuo abrindo o Digestivo todos os dias e editando uma coisa ou outra. Mas, para quem não sabe, a maior parte do meu tempo, hoje, está voltada para o Portal dos Livreiros (e seus mais de 4,7 mil vendedores).

Como eu passei do jornalismo cultural para um “marketplace” de livros? É uma história que, outro dia, eu posso contar...

O que vale, aqui, é que me surpreendi com o jovem de 23 anos que mandou aquele fax para o Daniel Piza...

Por um momento, me esqueci de que era eu. E quando me lembrei, pensei: “Nossa... eu”.

*

Eu sempre achei o Daniel Piza precoce. E nunca me conformei que ele começou o “Caderno Fim de Semana” com apenas 26 anos...

Mas, de repente, lá estava eu - na história - com 23 anos. E em 2000, quando o Digestivo começou, eu tinha... 26 anos.

Na época, eu nem me comparava ao Daniel Piza, e me julgava um mero “aprendiz” perto dele...

Mas o texto do Francisco - me corrijam se eu estiver enganado - acaba encadeando o Digestivo ao “Fim de Semana”...

E isso, para mim - lendo - antes de parecer lógico, me pareceu... chocante.

*

Porque o “Fim de Semana” é o último grande momento do jornalismo cultural brasileiro, literalmente, em papel jornal.

Depois, certamente, vem a Bravo! - em formato revista, desde a editora D’Ávila até a venda para a editora Abril.

Mas quando a gente fazia o Digestivo, eu, sinceramente, não imaginava o site nesse panteão...

*

Para começar que nós não tínhamos estrutura...

O “Fim de Semana” - o Daniel Piza me contou - tinha um orçamento de R$ 1 milhão/ano, que o próprio Daniel administrava.

E cada revista Bravo! - cada edição da Bravo! - custava R$ 250 mil. Ou seja: R$ 3 milhões/ano.

No Digestivo, para que se tenha uma base de comparação, nós nunca conseguimos remunerar os Colaboradores.

Ou melhor: conseguimos uma única vez: quando viramos revista - por um mês - graças à GV-executivo.

*

O que eu quero dizer é que eu não imaginava que o nosso jornalismo, no Digestivo, fosse páreo para esse jornalismo “profissional” impresso, digamos assim.

Inclusive, foi uma discussão que nos assombrou longamente - porque os “jornalistas de papel”, como eu os chamava, eram os primeiros a afirmar que “não era a mesma coisa”...

E, de fato, não era mesmo. Não que não fosse a mesma coisa em termos jornalísticos (em termos de qualidade jornalística)...

Não era “a mesma coisa” porque era, justamente, uma coisa nova - cuja “fórmula”... nós estávamos descobrindo - que se inspirava no jornalismo tradicional mas que tinha muito de tecnologia e de inovação...

*

Hoje eu penso que o que a gente “perdia” em termos jornalísticos “tradicionais”, a gente ganhava no fato de ter começado “do zero”, sem “manuais de redação”, sem a “benção” de um grande “nome” ou de uma “instituição”...

E - mesmo assim - construímos uma “marca” (o Edu sempre me falava isso), e, para minha surpresa, acabamos nos tornando “referência” - o que o texto do Francisco reafirma.

*

Olhando assim... parece impossível - mas nós fizemos.

Claro que pagamos um “preço” e claro que teve um “custo” - até em termos pessoais...

Afinal, ninguém mexe com cultura, jornalismo, internet... no Brasil... impunemente.

*

De toda forma, isso não tira o brilho do que foi feito. E o que foi feito está lá...

Não vou dizer que “para sempre”, porque nem o universo é para sempre...

Mas tem um lugar na história do jornalismo cultural brasileiro. (Antes eu achava que pudesse ter... Hoje eu sei que tem mesmo.)

*

Sobre o Francis: como narra o texto, não cheguei a conhecê-lo. Mas é óbvio que o espírito dele pairava sobre nós...

E é irônico pensar que a morte dele, virtualmente, começa a minha relação com o Daniel Piza e - por que não dizer? - com o jornalismo cultural contemporâneo (do qual o Daniel, a meu ver, era o maior representante).

*

Hoje eu nunca escreveria “homem retumbante” (de “retumbante”, já basta o “brado”) - mas aquele fax é profético (hoje percebo): porque começou minha correspondência com o Daniel (a qual só se encerrou com sua morte, 14 anos depois).

Vale registrar que o Daniel me respondeu diligentemente, listando todos os livros do Francis, e comentando cada um deles - lembrando que, em 1997, quase não havia internet, muito menos Wikipedia...

Como já contei em outras ocasiões, tive o privilégio de ler o “Fim de Semana” e de poder comentar, cada edição, com seu editor. A ponto de o Daniel sentir minha falta e estranhar, quando eu não comentava...

Se tive uma “formação” em jornalismo cultural, foi essa, como leitor. Quando ainda me formava na Poli, quando era trainee do Itaú e, depois, analista do ABN Amro (mais tarde, Real)...

*

O Diogo Mainardi sempre foi mais distante...

Ele me apareceu porque resenhei seu “Contra o Brasil”, em 1998, antes do Digestivo - e ele me mandou um e-mail, dizendo que estava “muito melhor” que várias resenhas da imprensa etc.

Mas ficou por isso mesmo... Ele estava começando sua coluna na Veja e, embora tentasse escrever sobre literatura, logo tenha descoberto o tema do “Lula” e abandonado, por um bom tempo, a mesma literatura (ainda não li “A Queda” para ver se é isso mesmo).

*

O Daniel reclamava que o Diogo havia abandonado a cultura. Reclamava que não soubesse mais nem o que o Diogo estava lendo...

Na época em que o Diogo Mainardi estreou no Manhattan Connection, eu havia encontrado o Daniel e ele comentava rindo: “O que foi aquilo?”.

Crítiquei a estreia no Digestivo e, quando o site foi mencionado no Manhattan Connection (logo depois), o Diogo lembrou no ar: “O Digestivo Cultural disse que eu não deveria estar aqui!”.

E todos, no Manhattan, caíram na gargalhada...

*

Quando entrevistei o Diogo para o Digestivo e perguntei sobre a literatura, ele foi curto e grosso - disse que a “literatura não dava dinheiro” e, por isso, ele havia parado.

Ora, literatura nunca deu dinheiro mesmo...

A minha teoria é que, na verdade, uma das grandes influências do Diogo tanto quanto (ou até mais que) o Francis é o Ivan Lessa.

E o Ivan Lessa sempre ganhou a vida falando mal do Brasil - ou do “Bananão”, como ele chamava...

*

Ao Sérgio Augusto - que, aliás, é de esquerda - o Digestivo deve, pelo menos, dois grandes reconhecimentos: na Carta Capital e n’O Pasquim XXI (que acabou, mas que era o retorno do lendário Pasquim).

O Sérgio, que é uma flor de pessoa, ainda nos concedeu aquele reconhecimento em livro, que o Francisco menciona, na continuação do seu “clássico” Lado B (com textos de Bravo! e Bundas).

Junto com o Ruy Castro, o Sérgio Augusto sempre foi a maior autoridade em jornalismo cultural - numa geração entre o Paulo Francis e o Daniel Piza, digamos assim.

Logo, o reconhecimento dele já bastaria...

*

E o Ruy Castro eu fui descobrir que era leitor do Digestivo através de sua ex-mulher, que havia lançado “Amor na Internet”, que eu havia resenhado...

Eu considero que o Ruy levou o jornalismo cultural onde nenhum dos outros levou - quando se pensa no formato livro...

Mesmo Paulo Francis - que me perdoem os fanáticos - não tem livros tão bons quanto os do Ruy Castro. Nem o Daniel Piza, nem o Sergio Augusto e nem o Diogo Mainardi.

Sem prejuízo do talento de todos os outros, o Ruy levou o nosso jornalismo cultural a um novo patamar.

E as biografias da Bossa Nova, de Nélson Rodrigues, de Garrincha, de Carmen e de Ipanema são para sempre. Ou enquanto o Brasil durar...

*

Encerro dizendo que talvez eu tivesse razão (mais do que imaginava) - nos anos de glória do Digestivo - ao não misturar cultura com política...

A tentação sempre foi grande: política sempre deu mais audiência, sempre gerou mais comentários, e xingar o adversário era uma espécie de “esporte” (logo no início)...

Mas passados uns bons anos - sob o império do Facebook e do chamado “algoritmo” -, posso dizer que não sei se foi bom para o mundo colocar a política, e principalmente a “polarização”, na frente de tudo...

*

Hoje ter uma discussão mais elevada - acima do fla-flu cotidiano - parece algo tão distante quanto bizantino...

*

Não sei o que vai nos resgatar da selvageria e da barbárie, nos debates e nos comentários, nas redes sociais...

*

O que sei é que, numa época em que se fala tanto em “legado”, às vezes tenho a sensação de comecei a minha carreira ao contrário...

Graças à oportunidade de estar no lugar certo, na hora certa, de ter encontrado as pessoas certas, as condições de temperatura e pressão certas, pudemos fazer o Digestivo e deixar esse legado, sem aspas, para as próximas gerações...

*

Agradeço, mais uma vez, ao Francisco Escorsim, pelo reconhecimento e por ter me proporcionado esta reflexão.

Dizem que as últimas palavras de Platão teriam sido: “Agradeço por ter nascido homem, grego e no século de Péricles”.

Já eu agradeceria, simplesmente, por ter nascido “no século da internet”.

Creio que estamos só começando.

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Julio Daio Borges
São Paulo, 20/2/2018

 
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