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Quinta-feira, 29/6/2017
Os Doze Trabalhos de Mónika. 3. Um Jogo de Poker
Heloisa Pait

Leia a primeira aventura de Mónika, À Beira do Abismo.

Yasmin tinha ido para casa descansar e Mónika terminava um milkshake na lanchonete que ficava de frente para o museu paleológico de Ambaíba, que já tinha até aparecido na novela.

Gostava de olhar o museu, com seu estilo art nouveau. Se algum dia se aposentasse e viesse morar ali, tentaria abrir uma lanchonete dentro do museu, como a que tinha na Casa Húngara. Lá eles organizavam os almoços mensais típicos, com goulash, batatas assadas, salsichas, mas o melhor era o hamburger com batata frita. O clube tinha um ar permanente de anos 1950.

Uma lanchonete, um privilégio. Um pouco como o museu à sua frente.

E não é que, interrompendo o devaneio, lá vinha o deputado Luís Venczel acompanhado do doutor Frederico? E vinham na sua direção, meu deus, talvez se sentassem na sua mesa.

– Podemos sentar aqui, Mónika? – Venczel perguntou, sempre irônico e galanteador.

– Por que não, Lajos? – ela respondeu no mesmo tom. – Como vai, doutor Frederico?

O médico sorriu, e o político respondeu:

– Não sei, você sempre ocupada com seus pensamentos, escrevendo livros...

– Estou só passando o tempo, a companhia de vocês será um prazer. Mas estou surpresa, Lajos, que faz aqui no interior? Alguma campanha?

Mónika não o perdoava. Não sabia bem pelo que não perdoava, mas os dois entendiam que seu rancor era justificado.

– Mónika, sabe a última do Luís? – perguntou o médico, mais afável que no consultório – Vai ser o presidente da associação latino-americana de poker profissional!

Mónika ficou pasma. Aquele pasma que acontece nos romances ruins, em que a mulher fica muda e faltam-lhe as cores da face.

– Presidente do quê, Lajos? – ela o chamava pelo nome húngaro, em geral para o irritar. Mas hoje era porque estava em choque mesmo, usou a língua materna que lhe vinha mais fácil à mente.

– Presidente da Associação Latino-Americana de Poker Profissional – ele respondeu, marcando bem as palavras, orgulhoso.

– Desde quando você joga poker?

– Sempre joguei. Adoro poker.

– Você sabia disso, doutor Frederico? – Ela acusava o médico de cumplicidade num crime.

– Sim, sabia. – E explicou: – O Luís tinha até um projeto de levar o poker às escolas públicas quando era secretário de educação. Não foi muito bem compreendido, não é Luís?

Poker. Então era isso. Poker. Ele jogava. Não jogava como um jogador, um Dostoievski, entregue. Não. Apenas apreciava o jogo. Era isso. A política! A aposta, o blefe. Saber as cartas que o outro tem.

– Verdade, Ferenc, meu amigo. Não foi, reconheço – disse Venczel, humilde, mas logo recuperou a verve. – A Mónika, que é uma analista simplesmente brilhante da cena política brasileira, da cultura deste país, vai saber por que...

Venczel afagava o ego da professora pois pensava que ela estava por um triz. Prestes a um sermão daqueles sobre ética e não-sei-mais-o-quê. Mas não. Mónika estava pasma. Não era capaz de dar bronca em ninguém, não conseguia acreditar. Venczel tinha apostado o país numa mesa de feltro verde.

– Lajos, me diga novamente, por favor: você agora é um tipo de cartola de... de poker? Por isso é que você está sumido do noticiário? – Mónika não acreditava na história. Voltou-se ao médico: – Doutor Frederico, não brinque...

O poker, é verdade, havia se tornado mais popular ultimamente. Clubes de bairro, jogos online, cursos caros para crianças ocupadas e gratuitos para jovens em situação de risco. Era uma dessas febres que assolava o país de tanto em tanto tempo.

Mónika se perguntou onde estariam as fichas de sua avó. Tinham vindo na mala, Dona Ada adorava poker! Mas era engraçado o modo como ela jogava, pois condenava os blefes e exigia uma seriedade que os netos não tinham, o que tornava o jogo bem engraçado.

Olhou para Venczel como Dona Ada mirava os netos brincalhões. Agora sim, estava por um triz. O país no feltro verde. O político percebeu que o clima mudara.

– O Brasil, Mónika, você que é uma estudiosa, o brasileiro é um apaixonado. Faz tudo por amor, por ódio, o homem cordial do historiador Sérgio Buarque de Holanda... – Fernando Henrique havia lançado um livro sobre os pensadores brasileiros e agora a classe política esbanjava apostos eruditos – O poker exige silêncio, reflexão, raciocínio e sobretudo cálculo.

Mónika emudeceu. O deputado discorria sobre jogo:

– Ele põe de lado as traições, os rancores, os desejos... – Venczel enumerava cada paixão humana como se elas lhe viessem à mente com esforço profundo. Era muito bom ator.

– Mas...

– Calma, calma. Você sempre aflita. – Venczel apertou forte seu antebraço, como se a impedisse de fugir. – Calma. E não exige só raciocínio. O brasileiro...

– Lajos...

– Deixa eu concluir, fiatal lány... O brasileiro pensa só em si. Só vê a si. É o centro do mundo, ele e seu séquito – Venczel subiu o outro braço e fez círculos como se enaltecesse esse brasileiro-rei. – O poker tira o homem do centro, pois cada um dos outros jogadores têm o mesmo número de cartas na mão, as mesmas chances, o mesmo valor. É preciso pensar em cada um deles como um indivíduo autônomo, independente. O poker é a solução para o Brasil! – Venczel concluiu.

Mónika resistia, mas aos poucos era convencida pelo deputado:

– Lajos, você apostou o Brasil numa mesa de poker!, foi isso que você fez! Meu Deus, o que poderia ter acontecido...

–– Estou longe da política, Mónika. – O deputado colocou os cotovelos atrás de si, as palmas da mão abertas como se se afastasse de tudo. Quero agora divulgar o poker e é assim que vou mudar o Brasil. Veja o futebol que todos falam tanto, que é bonito, é verdade. Mas é um rei e seus súditos lhe servindo até que pá, faça um gol. E aí é coroado. É isso o que você quer?

Ele era mestre em mudar de assunto. Que tinha o futebol a ver? Ela queria coisas sensatas, políticas públicas, lutava pela transparência. Mas era assim que Lajos Venczel ia mudar o Brasil.

Ela se sentia como se tivessem lhe tirado o chão. Todo aquele auê, uma nova política... E os jovens que ele havia encantado, que decepção teriam? Quis perguntar sobre os jovens, mas Venczel e o doutor Frederico já conversavam sobre os planos para a Casa Húngara.

Mónika tinha se interessado pela política partidária por causa do deputado Luís Venczel. Fez até projetos de extensão na faculdade. Raciocinava: “Vou entender como pensa o Lajos, nem que antes tenha que entender o Brasil.”

E era tudo carteado.

– Lajos... – ela ainda fazia um último apelo, como se estivesse ao alcance dele mudar o mundo.

– Mónika, Mónika... – ele respondia condescendente – O poker vai mexer com a nossa juventude! Não é nos partidos que vamos conquistar o que você e eu queremos para o Brasil.

Está no ar a quarta aventura de Mónika, O Museu Paleológico.

Esta é uma obra de ficção; qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência

Heloisa Pait
São Paulo, 29/6/2017

 
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