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Quinta-feira, 20/7/2017
Apontamentos de inverno
Elisa Andrade Buzzo

Pelas janelas e nas ruas abençoadas, o tão esperado banho de sol, sonhado pelos moradores todos dessas casas ensombreadas. Os agonizantes moradores dos apartamentos sem sol saem, aos poucos, descolam-se, como musgos presos nas sombras. E no primeiro quarteirão em que suas peles percebem o calor incidindo, é como se a Terra finalmente se tornasse uma banheira de água morna e habitável.

Nas áreas comuns desses apartamentos recolhidos em si mesmos, corredores e escadarias de tantas residências no escuro silêncio de um inverno eternizado por arame e concreto. Pequenas rajadas de vento entram pela janelinha da porta. Os degraus estão gelados e sujos, perpassados pelo que hoje são restos fantasmagóricos de antigos moradores. No entanto, é preciso atravessar essas galerias, feito catacumbas arrepiantes.

Mesmo que seja um luxo contar até mesmo com o reflexo cegante de um prédio envidraçado, ou com a parede clara e fosforescente de um grande edifício residencial... Que não se contente com meros reflexos frios. Que se saia, como para uma passeata, para celebração do delicado contorno de uma tarde invernal.

Na silhueta do cair da tarde, prédios na longa linha horizontal da avenida se delineiam numa aura solar e fofa. A cidade mais humana e suave na paleta de nuances do sol de inverno. Um bebê com manta branca e encapuzado é um anjinho nem um pouco barroco nesse céu num instante eternizado.

E que estardalhaço de xícaras e pires batendo, trincando da friagem que se aproxima com o cair do sol. As coberturas de tortas doces rebrilham na pequena atmosfera da vitrine. Nas ruas, os ambulantes estendem espelhos em suas barracas de cachecóis e toucas. Como parece tranquilo esse inverno daqui, nesta ambientação estranha de povo apaziguado.

Entre as folhas dos pinheiros nos cemitérios, desponta um pontilhismo em tons de laranja do precoce anoitecer. Barracas de moradores de rua parecem curtir a suavidade de um pôr do sol praiano, e os últimos raios do dia encimam o edifício Queen Elizabeth. Emergidos das sombras e a elas retornando, assim surfamos, delirantes, nesta terra de subtropical indiferença.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 20/7/2017

 
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