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Terça-feira, 25/7/2017
A noite iluminada da literatura de Pedro Maciel
Jardel Dias Cavalcanti



A editora Iluminuras acaba de publicar A noite de um iluminado, de Pedro Maciel. O que está em jogo nesse romance é uma questão vital para a literatura contemporânea. Como lidar com o espelho quebrado da realidade e sua multiplicação de cacos e dos ecos desses cacos? É essa a obsessão da literatura verdadeiramente contemporânea, a de descobrir uma linguagem que poderia exprimir algo próximo desse mundo de miríades de pequenos átomos quebrados. Construir uma espécie de vitral com o que sobrou de nossas certezas aos pedaços, como sugeriu o dramaturgo Gerald Thomas.

Libertado das limitações das construções lógicas, científicas e da análise factual, que muitas vezes toma a mente dos escritores preocupados em dar conta da “realidade”, a literatura de Pedro Maciel se projeta como possibilidade ou tentativa de uma nova e genuína expressividade. Sem a ambição da totalidade como guia, o narrador não ocupa mais o lugar do sujeito que emite enunciados fechados, como se fosse um portador da verdade. Se para nós essa forma de se relacionar com a existência é quase um pesadelo kafkiano, para Pedro Maciel é o contrário: “Para mim, o pesadelo é um oráculo”. (p. 115)

Se seu romance (essa palavra, no caso de A noite de um iluminado, não tem relação alguma com o tradicional romance) tem como guia as estrelas, o que ele capta delas não é nenhum norte, pois o que ele vê são “reflexos das estrelas que se extinguiram há milênios”. São esses reflexos que perpassam a mente do narrador em tantas interrogações quanto respostas ao longo do livro.

Não há dúvida de que a riqueza do romance de Pedro Maciel também deriva das experiências no campo das reflexões do narrador a respeito da própria insuficiência da nossa linguagem tradicional. À permutabilidade das experiências da vida, sua literatura responde se distanciando deliberadamente do chamado “discurso objetivo” e da chamada “realidade objetiva”. Para isso, coloca o narrador sempre em crise com a criação, consigo mesmo e com o leitor.

Se os fenômenos da realidade não podem ser abarcados como um todo, resta-lhe comungar com as indeterminações. E o livro se articula a partir de questões que vão se sobrepondo, como se um espelho quebrado pudesse, dentro de cada caco, reproduzir o próprio caos da quebradeira. Para isso, Maciel forja construções que resultam num manancial imagético surpreendente.

Em Notas sobre literatura, Adorno vaticina: “Se o romance quiser continuar fiel à sua herança realista, e dizer como o mundo realmente é, deverá renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, contribui apenas para favorecer a sua função de produzir ilusões.”

Adorno está falando daquele romance específico da era burguesa que sofre no século XX uma tremenda crise, não conseguindo mais dominar artisticamente a existência. Não basta mais, portanto, a linguagem do relato, já que a narrativa se tornou impossível com a desintegração da identidade da experiência no pós-guerra. Com isso, acreditava o teórico da Escola de Frankfurt, os melhores romancistas seriam justamente os que apresentam as soluções mais inteligentes para essa “crise da narrativa”. Não sendo possível uma realidade filtrada e harmonicamente falsificada (na sua suposta possível compreensão), resta uma forma de exposição que não tem mais uma preocupação sistemática, na medida em que o autor apresenta fragmentariamente e/ou livremente suas ideias.

É nesse sentido que cada ideia dentro do livro de Pedro Maciel é uma soma de diversas percepções, de perguntas que vêm e vão, retornando dentro do reflexo dos cacos miúdos que se multiplicam, se encontram e se desencontram, somando-se infinitamente em derivadas que ecoam aquilo que, por si, já era um eco. Parece que estamos navegando dentro das formulações de Guimarães Rosa no seu Grande Sertão, que, aliás, seria o instrumento mais eficaz para se entender essa nova literatura: “O que falei foi exato? Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.”

Talvez as palavras de outro escritor, Martin Walser, em seu Unicórnio, também nos ajude a definir bem a experiência literária de Pedro Maciel: “Necessitaria de antipalavras. Palavras para a lembrança apresentam-se como um eco. Mas o eco é o próprio som, o MESMO ruído, lançado de volta ao meu ouvido.”

Um romance como esse não nos dá o norte, ao contrário, demonstra que o mapa celeste se recompõe a cada momento, já que o brilho de uma estrela não é mais o que existe, mas o que existiu. Tempo e espaço cósmicos são o laboratório dessa literatura, que não faz mais perguntas à “realidade do mundo”, mas à linguagem celeste da poesia, um espaço novo e aberto às perguntas fundamentais sobre a razão de nossa existência e um novo sentido para a escritura do romance.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 25/7/2017

 
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