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Quinta-feira, 1/2/2018
Os Doze Trabalhos de Mónika. 11. A Quatro Braçadas
Heloisa Pait

Leia a primeira aventura de Mónika, À Beira do Abismo.

Mónika virou-se e viu o rosto de um homem um pouco acima de si. Imaginou que pudesse ser o fantasma do patriarca Leó, ou mesmo seu avô. Pensou em Lajos Venczel, no piloto da Varig, no Dr. Frederico. Pensou no Senador Caiado, no chefe de manutenção da faculdade, todos os rostos se confundiam diante de si. O homem sorriu. Tinha os cabelos aloirados, o rosto fino, a boca larga. Mónika estava cansada, mas o sorriso lhe fez bem. Abraçou o desconhecido. Ele retribuiu o abraço. Era mais alto que ela. Ele disse:

– Você é bem alta.

Ela não entendeu. Era húngaro, e a língua materna a pegou de surpresa. Abraçou-o mais forte, como se quisesse agarrar qualquer sentido.

– Você é bem alta, gosto disso – ele repetiu.

Desta vez ela entendeu. Pensou que queria aquele tronco alto, magro, com um rosto na cabeça que lembrava o de seu avô, pelo resto da vida. Sorriu de volta e o beijou, fazendo carinho na sua nuca, como uma antiga namorada.

– Sou o diretor do documentário, você lembra de mim, não?

Mónika riu de si mesma. Claro, o documentarista do seminário da faculdade, como não tinha reconhecido? Falou rindo:

– Desculpa, não tinha juntado as coisas.

Os dois riram. O documentário era sobre a direita.

Mónika tinha achado o documentário espetacular. Mas não estava certa que seus colegas tinham aquilo em mente quando o convidaram. Entrevistas com cientistas, com médicos, com políticos e com jogadores de futebol. O que era a direita? Que relação tinha com a esquerda? Astrônomos, amantes, arquitetos. Relojoeiros. Linguistas. Motoristas de caminhão. O documentário era muito bom. Saíram todos fazendo gestos com as mãos, forçando os olhos em direções pouco usuais, reordenando algo em suas cabeças.

Mónika tinha o hábito de levar os visitantes num bistrot nos arredores da cidade. Tinha certeza que o documentarista ia gostar. O húngaro aceitou. Móveis de fazenda, velas na mesa, não havia como não gostar. Comida franco-caipira. Quiabo, salsichas artesanais, polenta com ervas, vinho do Sul, tudo gostoso. Era engraçado, se sentia gente à mesa. Com o diretor, se sentia gente. Mulher, até. Sorria, ouvia, falava. Não precisava seduzi-lo, por conta do beijo inicial. Era só comer, beber, escolher alguma língua pra falar que ele compreendesse.

– Mónika, por que me chamaram para apresentar o documentário em Ambaíba, você sabe?

Mónika não sabia. Ou sabia, mas seria difícil explicar. Não importava. Gostava do vinho, do rosto do homem à sua frente, do fato de ele lhe perguntar coisas. Disse isso para ele desse jeito mesmo, pois não sabia inventar coisas:

– Não sei bem. Ou sei, mas seria difícil explicar. Não importa. Gosto de estar aqui tomando vinho, de ter seu rosto à minha frente, que me lembra do rosto de meu avô e do fundador de Ambaíba. Gosto também que você me pergunte coisas, como se eu as pudesse responder.

Algo a tocou profundamente. O sorriso sumiu de seu rosto, os olhos umedeceram. Ele aproximou a cadeira e resolveu colocar pedaços de carne na boca dela. Assim ela precisava mastigar e parava de chorar. Era engraçado. Era engraçado ser assim cuidada, não precisar pensar, questionar, entender. Pediram ao dono do restaurante um quarto, pois queriam passar a noite juntos.

Ele tirou a roupa e disse que precisava de um banho. Ela deitou na cama e esperou muito tranquila. Estava em paz. O lugar todo era um grande silêncio. Depois levantou-se apreensiva, fuçou nas roupas dele e encontrou seu crachá do seminário, com o nome impresso em letras garrafais. Péter. Retornou as roupas ao seu lugar e deitou-se novamente. Não podia esquecer. Péter.

– Péter, – ela disse quando ele apareceu enrolado na toalha, num esforço de memorização – Péter.

A transa correu bem. Ela estava entregue. Ele tinha vontade. Então tudo transcorreu bem. Depois seria depois, mas na hora tudo correu bem, seu corpo sobre o dela, os ombros fazendo ondas, a pele lisa, um cheiro familiar, os braços firmes. Tudo certo. Antes de dormir, pensou: “Péter, não posso esquecer.”

Acordaram no meio da noite, ele perguntou se ela queria de novo. Ela disse que não, mas queria conversar, se ele não se importasse. Ele assentiu. Já estava no lucro, não havia de que reclamar.

– Claro! – e tirou a franja dos olhos dela. Diga.

– Você esteve nos Jogos Magiares de 1977? Você nadou a prova de 200 borboleta e ficou em 2º lugar, Péter?

Péter olhou para o teto, ficou em silêncio. 1977. 200 borboleta. Não quis perguntar como ela sabia. Google? Lembrança?

– Sim, segundo lugar.

– Para nós, foi muito importante vê-los, Péter, vindos de todos os cantos. Nós nos sentimos gente, nós não éramos mais, sei lá, prisioneiros. Havia todo um mundo além da Hungria, e era nosso mundo também. Você nadou pelo Canadá, não?

Péter estava incomodado. Não queria lições de história.

– Mas como você sabe que eu nadei os 200 borboleta?

– Eu estava lá também. Esgrima. Acho que sou uns anos mais nova que você.

– Como você sabe que eu nadei os 200 borboleta? – ele acentuou o “eu”, um pouco irritado. Queria saber como ela o tinha reconhecido.

– Ah, perdão. O jeito como você mexe os ombros, bem borboleta. E também o cloro. – Ela falou amorosa, lhe fazendo carinho, mas teve medo de ser mal interpretada.

Adormeceram de volta. Ela, com as lembranças dos jogos de 1977. Ele, com as lembranças dos jogos de 1977. Os dois no quarto de hóspedes do restaurante campestre de Ambaíba. Mónika ainda tinha um trabalho. Depois, ela sentia, estaria livre. Apenas um trabalho mais.

– Ainda tenho um trabalho, Péter. Um trabalho só.

– Vou escrever para você, Mónika.

E se despediram no café da manhã.

Está no ar a décima segunda aventura de Mónika, Rumo ao Planalto.

Esta é uma obra de ficção; qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência

Heloisa Pait
São Paulo, 1/2/2018

 
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