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Quinta-feira, 3/5/2018
Primavera para iniciantes
Elisa Andrade Buzzo

Ninguém teve coragem. Ou ninguém ainda quer. Sou o único habitante desta cidade a usar sandálias no primeiro dia verdadeiramente quente e de céu limpo da primavera já iniciada. E as minhas sandálias em prata calçam pés humilíssimos. Caminham pelo jardim do Campo Grande com sua grama recém cortada cheirando forte pela passagem do inverno, com seu mato novo entrecortado por avenidas, passarelas e viadutos, não pelas lojas de luxo da avenida da Liberdade desveladas por turistas afoitos em estado de euforia, estes sim já com pés desnudos e mágicos.

Depois de seis meses com os pés calçados com meias e botas, embora o inverno não tenha sido nada rigoroso, é com uma estranheza que se cogita sair de casa com os dedos de fora. DEDOS de fora. Acaso isso é permitido? Parece-me que não mais. Exibir unhas encravadas, dedões com micose amarelada, calcanhares ásperos e cinzas? Há uma repentina dificuldade imensa em decidir o que vestir, o que calçar; valerá o mundo a pena de ser vivido nas novas condições que se apresentam de uma hora para outra? Indefinições, falta de clareza, até no clima.

Mas um bom termômetro para saber o que usar em caso de dúvida é colocar o rosto, o corpo, para fora da janela, sentir o vento, espreitar os passantes que mais cedo saíram para uma perscrutação opinativa. Nada, aqui não passam pessoas, apenas carros, das janelinhas das carruagens dos trens nada se pode diferenciar. Pego o ônibus e vejo mulheres de botas, trench-coats amarfanhados, tênis, meias, casacos. Estes corpos em pouco devem explodir como bombas-relógio diante das temperaturas que vão aumentando. Uma mulher já arranca seu casaco, ostentando blusas de mangas compridas por debaixo. Outra está com a touca de lã branca de sempre.

Então eu aperto os dedos contra o chão com insegurança, desviando das areias e das arestas cortantes das pedras, aspirando os detalhes da impecabilidade do horizonte limpo, dobrando os corredores colantes da biblioteca, fingindo que hoje nada mudou, é apenas um dia como o anterior, e os meus dedos não consistem em um disparate tropical.

Elisa Andrade Buzzo
Lisboa, 3/5/2018

 
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