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Quinta-feira, 18/7/2002
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Lucas Rodrigues Pires

Sexta-feira passada fui ao cinema ver 8 Mulheres. Não tinha muitas expectativas quanto ao filme, mas quando começaram os trailers pensei logo que poderia ser exibido o de Cidade de Deus, o tão comentado filme que Fernando Meirelles adaptou da obra homônima de Paulo Lins. Pois e não é que ele estava lá!!! Emocionei-me ao ver a primeira imagem - de uma galinha correndo e a câmera colada nela. Para alguém que leu o livro Cidade de Deus, e adorou, esperar para poder ver o filme é uma tortura sem tamanho (assim como foi, é e será com os três episódios de O Senhor dos Anéis). Ainda mais quando um diretor do calibre de Meirelles está por trás do projeto.

A questão que falarei hoje é outra. Não discutirei o filme, pois ainda não o vi. Meu apontamento está no fato de que NÃO vi nada do filme Cidade de Deus naquele trailer que a Lumière disponibilizou nas salas de cinema. Aquela imagem da galinha correndo em desespero contrastou com a de um facão sendo amolado, e mais nada!!! O restante foi completado com frases pinçadas de revistas e jornais estrangeiros sobre a genialidade da obra. Irritou-me profundamente esperar ver algo e apenas ver o que jornalistas americanos, ingleses e franceses - que, diga-se, já viram o filme - escreveram a respeito de Cidade de Deus. Mais irritado ainda foi perceber que o mesmo artifício fora usado para divulgar Abril Despedaçado. O que parecia uma estratégia de marketing para aproveitar a oportunidade de levantar um filme que estava cogitado a concorrer ao Oscar, soou-me como uma nova modalidade de atestar qualidade, algo típico da tradição brasileira: frases de efeito de publicações estrangeiras jogadas sobre o público brasileiro. Tudo parecendo como se o que dissessem no exterior servisse de legitimador da qualidade do produto audiovisual brasileiro.

Tal postura possibilita tocar num ponto que chega a ser algo facilmente detectado entre nós, brasileiros: o pensamento de que tudo o que vem de fora é melhor. No cinema não precisa nem se falar, caso contrário não teríamos apenas 5% dos ingressos vendidos no país (porcentagem referente ao primeiro semestre). Dar ao espectador no trailer o que já se falou do respectivo filme no exterior é uma tática interessante - diria até produtiva, já que mantém a expectativa da platéia -, mas demonstra a necessidade de haver um fator legitimador externo para atestar uma suposta qualidade que deveria vir de seus cidadãos quando da exibição. Além disso, auxilia num outro ponto, desfavorável ao público brasileiro: pretere-se a exibição em território nacional em favor de outros mercados mais fortes comercialmente que possam gerar tais comentários positivos. Portanto, o povo brasileiro, que deveria ser o maior beneficiário de uma produção local, ainda mais por ser realizada com dinheiro governamental, está a mercê do que venham a falar e a escrever sobre determinada obra no exterior. Dependendo do caso, pode atrasar a estréia de um filme por meses, como foi o caso com Abril Despedaçado.

Assim como na economia, quando cresce a instabilidade do mercado, só alguma autoridade da área vinda do exterior para acalmar os investidores, o cinema brasileiro parece ter chegado no mesmo beco. Pode-se falar maravilhas, mas se oriunda de um indivíduo brasileiro não haverá os mesmos resultados. Crê-se na economia brasileira apenas quando jornais estrangeiros a elogiam. O mesmo pensamento aplica-se ao cinema. Mas será que um filme nacional, para fazer sucesso em seu próprio território, precisa ser elogiado em festivais na Europa ou por publicações americanas?

Concordo que ajuda na divulgação, mas é um exagero criar um trailer para expor todos os elogios recebidos. O que, de fato, aparenta ser um trailer como o de Cidade de Deus é um clipping jornalístico - um amontoado de resenhas, críticas, comentários etc que o filme recebeu e que são juntados para arquivo ou mesmo publicidade. Nada contra os clippings, mas um trailer de cinema serve basicamente para dar uma idéia do que será aquele filme, adiantar imagens, enredo, personagens e situações que aticem o espectador a assisti-lo quando estrear. Priva-se do benefício de oferecer imagens exclusivas, coisa que apenas o cinema faz com certa antecedência, para mostrar palavras ditas por publicações como Los Angeles Times, The Guardian, Variety, New York Times etc. Afinal de contas, um filme brasileiro só tem razão de existir porque será mostrado a seu povo. Filmes feitos para exportação não deveriam constar entre os beneficiários das leis de incentivo à cultura. Não deve ser o caso de Cidade de Deus, que apresenta temática típica brasileira, mas a forma de divulgação da empresa responsável aproxima seu produto disso. O filme poderá se beneficiar dessa prática, mas o público brasileiro não.

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 18/7/2002

 
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