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Segunda-feira, 19/8/2002
A idolatria do século XXI
Marcelo Barbão

Recentemente, na busca por alguma coisa boa na televisão, passei por um desses programas de auditório tipo B, com um cenário pobre, algumas dançarinas que já foram gostosas antes da celulite atacar e uma platéia que participa mais pelo sanduíche de mortadela do que pelas atrações.

Mas, antes de continuar meu passeio pelos botões do controle remoto, fui pego pelo choro de um homem nos seus 50 anos. Eu conheço esse homem, foi meu pensamento na hora. E fiquei assistindo. Queria saber porque ele chorava. E descobri rapidamente. Sentados em banquinhos de plástico, uma série de artistas que fizeram sucesso no passado, reclamavam do esquecimento da mídia e pediam (era por isso que o homem chorava) uma nova chance.

Era a grande dicotomia moderna: a luta entre os famosos e os anônimos. Pois, esse é o tema do recém-lançado livro de Ignácio de Loyola Brandão, O Anônimo Célebre. Quando o anonimato passa a ser considerado uma doença, a doença-símbolo do século XXI, e vale qualquer coisa para "curar-se" dela, quando vale até transar na frente das câmeras, simular casamentos, brigas, reconciliações, quando começamos a pensar que até vale a pena morrer se nos transformarmos num mito, então podemos pensar que algum limite, em algum lugar, foi extrapolado.

O texto está construído como uma coleção de pequenas notas que Loyola foi coletando por vários anos (10, segundo o próprio autor) sobre a história do anônimo que queria ficar célebre. Tanto queria, que organizava, a seu redor, um pequeno exército de assessores (mais adiante, de acordo com a última tendência da moda, os assessores começaram a ser chamados de gurus - o conhecimento deles não mudou em nada, mas os cachês...) com a única incumbência de colocá-lo em evidência. Assim, para se manter up-to-date (será que ainda usam isto?) é necessário um assessor cultural, de tribos (criam-se novas todos os dias), de imagens, de patrocínios (afinal, depois de famoso, ninguém compra mais nada na vida - troca pelo uso de sua imagem, de serem vistos comendo naquele restaurante ou passeando nesse shopping) e um dos mais importantes de todos: o criador de falsos eventos. Loyola até dá uma excelente idéia para escritores talentosos mas sem oportunidades no terrível mercado editorial brasileiro: criador de causos para alimentar a biografia de famosos.

Entre os diversos momentos maravilhosos do livro, alguns mostram uma boa dose de inspiração, como o capítulo (não sei se o melhor seria chamar de capítulos ou notas, já que o livro lembra uma colagem de momentos como o autor já havia feito na época do O Verde Violentou o Muro e Zero) que mostra qual é o mais belo som da vida para alguém alucinado pela celebridade: o som do aplauso. Direcionado a ele, é claro. Talvez possamos complementar que o pior som do mundo seria o silêncio. O silêncio do desconhecimento e do anonimato. De não ser convidado para as festas da moda, de não ser entrevistado, de não ser chamado para dar sua opinião em programas de auditórios ou não mostrar aquela famosa receita de sua tia-avó naquele programa matinal.

O texto de Loyola é sempre interessante e fácil de ler. Neste novo livro ele, ajudado ainda pelo tema ultra-modernoso, brinca com formatos novos de linguagem como o quase-dialeto dos e-mails. Outro aspecto interessante é o uso de recursos gráficos, o que mais uma vez nos relembra os experimentalismos inovadores dos seus romances mais famosos. O resultado é um excelente livro que supera em muito suas últimas e medianas obras como O Homem que Odiava Segunda-Feira e o Anjo do Adeus.

Mas, apesar de ser um Manual para tornar-se um Famoso, algo me diz que o livro de Loyola não servirá para uma grande parte dos anônimos que vemos diariamente na TV, nas festas, em desfiles de escola de samba e em qualquer lugar onde houver uma câmera fotográfica ou de filmagem. As muitas citações, entre filmes, livros, filósofos, atores e escritores, colocam este livro acima da capacidade de qualquer um dos atuais candidatos ao estrelato global. Seria necessário acompanhar só por alguns momentos qualquer um dos (finalmente) finados programas BBB ou Casa dos Artistas para descobrir que seus participantes não seriam capazes de reconhecer nenhum dos "modelos" citados pelo escritor, como talvez não conhecessem o próprio Loyola. Estranha ironia.

O final da saga do nosso célebre anônimo ainda surpreende com um quê cortazariano que explica sem explicar. Loyola, dessa forma, consegue criar uma excelente novela dos tempos atuais onde desvenda a verdadeira arte que é manter-se em evidência. Os 12 anos à frente da Vogue, uma das publicações que tradicionalmente dita a moda e o comportamento deste mundo de famosos, certamente ajudaram na coleta do material para o manual dos Vir-a-Ser.

Para ir além



O anônimo célebre
Ignácio de Loyola Brandão
Ed. Global
379 páginas

Marcelo Barbão
São Paulo, 19/8/2002

 
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