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Segunda-feira, 13/1/2003
Manet no Rio de Janeiro
Jardel Dias Cavalcanti

"Neste país, todos os negros são escravos e têm um aspecto embrutecido. O poder que os brancos exercem sobre eles é extraordinário. Tive a oportunidade de visitar um mercado de escravos: espetáculo bastante revoltante para nós. Os negros vestem, em geral, uma calça e, por vezes, uma blusa curta de pano grosseiro, não lhes sendo permitido, dada a sua condição de escravos, o uso de sapatos. As negras andam nuas da cintura para cima, portando algumas vezes um lenço atado ao pescoço, que cai sobre o peito. Em geral são feias, ainda que tenha visto algumas bem bonitas. A maioria se arruma com muito gosto: umas usam turbantes, outras arranjam os cabelos crespos com muita arte e todas vestem umas saias decoradas com enormes folhos".

Está é a descrição que Manet, então com 17 anos, faz sobre os negros do Rio de Janeiro, durante sua estadia na cidade, no ano de 1849, e que faz parte de uma coleção de cartas que comentaremos a seguir.

Manet tinha plena consciência de que uma tela não espelha a realidade, mas sim o artifício do artista. Por isso, pintou o retrato de seu amigo Émile Zola como se fosse uma natureza morta. O que ele buscava ao pintar um aspargo sobre a mesa ou Zola lendo era uma mesma coisa: trazer para dentro da própria pintura uma reflexão sobre o fazer artístico. Dessa forma, lançou as bases para a pintura moderna.

Mas não é este Manet, o fundador da pintura moderna, que nos interessa neste momento. Estamos nos encontrando agora com o jovem Manet, aos 17 anos, navegando rumo ao Rio de Janeiro, em viagem marítima. Esse encontro tornou-se possível porque a editora José Olympio publicou, em tradução de Jean Marcel Carvalho França, o livro Viagem ao Rio: cartas da juventude - 1848-1849, de Edouard Manet.

Trata-se de um conjunto de cartas escritas pelo artista durante a viagem e estadia no Rio de Janeiro. A edição do livro é caprichosa, delicada, trazendo além das cartas alguns desenhos que o próprio Manet fez durante a viagem e ilustrações de outros artistas referentes à cidade do Rio de Janeiro (paisagens, retratos de monumentos, cenas cotidianas e de trabalho escravo).

Nascido em Paris a 23 de janeiro de 1832, Manet descendia de uma respeitável família burguesa. O seu interesse pelo desenho remonta aos 13 anos. Para tentar dissuadi-lo a abandonar a idéia de ser pintor, em 1848 seu pai lhe propôs a escolha entre o serviço público e a carreira militar. Após fracassar nos exames para a Escola Naval, Manet acabou embarcando no navio-escola Havre e Guadalupe. No ano seguinte desembarcou no Rio de Janeiro, onde passou algumas semanas enchendo seu caderno de desenho com esboços e croquis (este era um hábito que jamais abandonaria, sendo um dos seus maiores prazeres errar pelas ruas de Paris com seu bloco de desenho em punho).

As cartas datam do período que vai de dezembro de 1848 a abril de 1849. Segundo a biógrafa Beth Archer Brombert, no seu livro Edouard Manet: rebelde de casaca, nota-se nestas cartas "um total domínio da sintaxe, facilidade de linguagem e uma complexidade de observação e sentimentos". A autora chega mesmo a dizer que "embora não ter trazido nenhuma foto da selva, a sua descoberta da luz tropical e sua vivência física do mar foram registrados com tal vivacidade que, muito tempo mais tarde, determinariam o modo como ele iria pintar a luz e a água".

As cartas, em sua maioria endereçadas à sua mãe, assemelham-se a um diário, onde são relatados os acontecimentos triviais cotidianos no navio. As descrições são marcadas por uma riqueza de detalhes e de observações, como que desejando trazer para sua família os mínimos detalhes da viagem.

Algumas descrições são eminentemente pictóricas: "Esta noite o mar esteve mais fosforescente que de costume, o navio parecia atravessar lâminas de fogo; foi muito bonito." Outras revelam o tédio infernal de alguns momentos do percurso sobre o oceano: "Parece-me que se passaram meses desde o embarque. Apenas céu e água, sempre a mesma coisa; é tão estúpido."

Ao ancorar no Rio de Janeiro, na baía de Guanabara, descreve o sentimento de alívio: "A esta altura, conheço bem os truques do ofício e por dois meses nem sentirei mais os pequenos sofrimentos por que passa o aprendiz de marujo; vamos finalmente beber água fresca e não mais comer, todo dia, carne salgada."

Ao contrário de Claude Lévi-Strauss, que detestou a baía de Guanabara, Manet amou-a ("a baía, como disse, é encantadora"), ficando quase uma semana admirando-a do navio, sem poder descer.

Suas observações iniciais da cidade são deliciosas de se ler: "Após o almoço, eu e meu amigo saímos para percorrer a cidade, que é de tamanho considerável, mas conta com ruas muito estreitas. Para um europeu com o mínimo de senso artístico, o Rio de Janeiro tem um aspecto bastante peculiar. Pelas ruas vêem-se somente negros e negras, pois os brasileiros saem pouco, e as brasileiras, menos ainda. As mulheres podem ser vistas somente quando vão à missa ou depois do jantar. Ao entardecer, quando aparecem nas suas janelas. Nessa ocasião, é possível olhá-las sem nenhum impedimento. Durante o dia, ao contrário, se por acaso alguma delas é avistada na janela e percebe que está sendo observada, imediatamente se retira."

Manet não deixou de reparar nas brasileiras, como se pode ver no comentário seguinte: "as brasileiras são, em geral, muito bonitas. Seus olhos e cabelos são magnificamente negros. Todas penteiam-se à chinesa, saem às ruas descobertas [sem véus] e, tal como nas colônias espanholas, vestem-se com uma roupa muito leve, que não estamos acostumados a ver."

As mulatas, evidentemente, foram elogiadas pelo jovem Manet: "cerca de três quartos da população são compostos por negros e mestiços, os quais são muito feios, salvo exceções encontradas entre as negras e as mulatas. As mulatas, a bem da verdade, são quase todas bonitas".

A condição escrava do negro não deixa de ser descrita: "No Rio, todos os negros são escravos e o tráfico é aí vigoroso." Sobre os brasileiros o comentário talvez não agrade ao leitor (a menos que a carapuça lhe sirva): "quanto aos brasileiros, são preguiçosos e parecem não ter muita energia."

A fama, universalmente divulgada até hoje, de que todas as brasileiras são putas é corrigida por Manet: "No tocante às brasileiras, são muito distintas e não merecem a reputação de levianas que têm na França. Ninguém pode ser mais recatada e mais tola do que uma brasileira".

A cidade do Rio não recebe elogios - a não ser que o olhar de um artista se detenha sobre ela: "a cidade, ainda que feia, tem, aos olhos de um artista, um caráter peculiar". Já a paisagem que cerca a cidade lhe toca profundamente: "os arredores da cidade são incomparavelmente bonitos, nunca vi uma natureza tão bela."

Além destas descrições aparecem nas cartas referências às chuvas torrenciais que cobrem o Rio de Janeiro, ao carnaval, à milícia ("a milícia local chega a ser cômica") e aos meios de transporte da população da época.

Mais do que um documento histórico ou antropológico, estas cartam têm um sabor especial, uma delicadeza de comentário (típicos de uma mente artística?) que beira, por vezes, o pictórico e o literário. Esse é, talvez, seu maior valor.

As cartas, em geral acabam nos conquistando, mesmo quando sabemos que o Rio acaba por ser um local limitado ao artista que deseja de pronto fugir dali: "Agora que já conheço o Rio a fundo, anseio ardentemente retornar à França e, o mais cedo possível, reencontrar os meus".

Dada a situação atual do nosso país, talvez, se fôssemos à França, o nosso comentário seria da mesma natureza do de Manet: "Cheguei na França, não desejo mais voltar ao Brasil".


Para saber mais:

Existe na biografia de Manet, escrita por Beth Archer Brombert (editada no Brasil pela editora Record), um interessante capítulo, denominado "Em alto mar" (cap. 2), sobre a viagem de Manet ao Rio.




Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 13/1/2003

 
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