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Terça-feira, 28/1/2003
Incêndio pleno: amor, pirraça, veneno e cachaça
Waldemar Pavan

A capacidade para - logo nos primeiros acordes - perceber que se ouve um samba, qualquer brasileiro tem. A identificação e percepção do genero é simultânea à audição.

Já a diferença entre um samba apropriado à parada de sucesso e um samba que se tornará definitivo reside na profundidade do provérbio elaborado pelo autor.

Noel Rosa, Cartola, Dona Ivone Lara, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Ataulfo Alves, Chico Buarque, Wilson Batista e outros raros notablizaram-se por serem eternos, nos anais da música brasileira, justamente pelo modo como transmitiram sua sabedoria de vida: sempre através de provérbios poético-musicais que fazem a delicia e a marca registrada de um samba definitivo.

A caracteristica de criar e empregar provérbios que condensam toda a sabedoria e a graça popular faz com que o samba se torne ímpar em relação a todos os outros generos musicais no mundo

Para além de ser um ritmo contagiante de se ouvir, o samba abriga, em seus dominios, uma vasta escola da sabedoria popular. Basta estar disposto a vasculhar, em seus meandros, e saber apreender.

Nesta universidade de vida documentada através do samba, Paulo Vanzolini é um dos grandes mestres.

Quem é bom sujeito sabe que a estrutura básica de um samba (que vai se tornar definitivo) leva em conta um relato onde o provérbio máximo, ou o toque de prima, se assim o preferir, comparece cantado no refrão.

Curiosamente, a obra musical de Paulo Vanzolini - apesar do carater proverbial estar repetidamente presente - não contém refrão (detalhe que ainda permanece como sendo um dos pontos fortes para o registro, popularização e memória de uma canção).

O exemplo mais conhecido de sua obra sem refrão é 'Ronda' - cuja conclusão é a forte imagem da cena de 'sangue num bar da avenida São João', que é cantada com emoção em todo os cantos do Brasil (inclusive, por intérpretes que sequer estiveram na avenida para conhecer a sua substancial e acelerada decadência).

Mas voltando à vaca fria: a ausência de refrão, entretanto, sequer é notada. A cada frase, o poeta-compositor Paulo Vanzolini é definitivo, lapidar: o ouvinte sempre tem a impressão de que aquela frase antológica vai em algum momento servir de propósito ao refrão, mas que nada, vem a outra frase - tão definitiva, lapidar e antológica como a anterior - e a sabedoria poética novamente comparece esplendorosa. Mais uma vez, o ouvinte tem a impressão que tal sabedoria se prestará a enriquecer o refrão, que insiste em não comparecer, nunca.

As mulheres, na obra de Paulo Vanzolini, são um capítulo à parte: temperamentais, fortes e racionais; não se prestam às futilidades, frivolidades e facilidades imaginadas e descritas pelos autores musicais contemporâneos. A mulher na obra de Paulo Vanzolini tem que dar samba, porque 'mulher que não dá samba eu não quero mais', adverte o compositor.

A fragilidade da mulher também comparece, invariavelmente como sinal de apatia ou loucura: 'Maria é boa mulata/ Me faz companhia/ Mas não ata nem desata/ Nunca sai dessa agonia'.

Além da loucura da apatia a mulher também é reconhecida pela soberba: 'Vendo-te assim, com os puros sinais da falta de mim/ Em pleno apogeu, morrendo de tédio e o remédio sou eu'.

A mulher-veneno, aquela do amor peçonhento, é retratada proféticamente para o mal: 'O meu problema é bem pequeno/ Não se zangue/ É só tirar o seu veneno do meu sangue'.

A mulher-peçonhenta também é imortalizada pelo bem que lhe faz (é quando o veneno vai servir como o principal componente para a elaboração do remédio): "Amor sereno, amor pirraça / Amor veneno/ Amor cachaça/ Amor debaixo d'água/ Amor no meio dos infernos/ Amor de meter susto ao Padre Eterno/ E já se vê/ Só pode ser o amor/ De eu e você".

Junto com Elton Medeiros, Paulo Vanzolini compôs 'Dançando na Chuva', peróla básica da maledicência: "Fez deboche do meu verso/ Diz que é frouxo e que é insosso/ Fez tanta mesquinharia e se orgulha do papel/ Você dançou rindo na chuva/ Mas não vai secar o céu".

Rimas, frases, versos, provérbios e ritmos, tudo é muito contagiante e deveras expressivo quando o assunto é o paulistano Paulo Vanzolini.

Mesmo contendo extensa riqueza abrigada no detalhe, o conjunto da obra de Paulo Vanzolini é atualmente conhecido por um minusculo circulo de admiradores - sempre confessos e devotos apreciadores.

O destaque que forneci sobre algumas obras que retratam as mulheres amadas e/ou exorcizadas constituem apenas um pequeno apêndice do vasto conteúdo temático e musical de Paulo Vanzolini.

Para detalhadamente elucidar e buscar a compreensão sobre este universo poético seria necessário lavrar muitas laudas, talvez laudas infinitas. A compreensão de sua obra, porém, não é fator de profundo estudo: Paulo Vanzolini não caetaneia nem djavaneia jamais; a metafora passa batida por seus escritos; tudo é dito de forma muito objetiva e direta - sem papas na lingua, sem nhenhenhê e sem palpo de aranha.

Paulo Vanzolini não é cantor, é compositor dos bons e raros são os discos especificos dedicados à sua obra. Eu conhecia, até o presente, apenas dois CDs-tributo, ambos fora de catalogo: 'A Música de Paulo Vanzolini', por Carmen Costa/ Paulo Marquez (Discos Marcus Pereira, catálogo agora pertencente à gravadora EMI); e 'Paulo Vanzolini Nas Vozes de Chico Buarque, Cristina, Adauto Santos, Luiz Carlos Paraná e Mauricy Moura', pela gravadora Movieplay.

Agora, podemos todos - graças ao rico e fundamental empreendimento conjunto da gravadora Biscoito Fino e Petrobrás Distribuidora - desfrutar da obra completa de Paulo Vanzolini, no recente lançamento da caixa contendo 4 CDs: 'Acerto de Contas', talvez o melhor e mais merecido tributo a um artista brasileiro, dado o desconhecimento público sobre o conjunto de sua obra.

Cada CD da caixa 'Acerto de Contas' contém 13 músicas, totalizando 52 gemas do melhor da música brasileira. Músicos de primeira e interpretações quase impecáveis trazem à luz Paulo Vanzolini, expoente da criação poético-musical brasileira.

Outro ponto importantissimo nesse tributo é a apreciável qualidade do projeto gráfico: delicadas ilustrações e cuidado apurado com o resultado final das gravações.

Apreciável também é o preço: nunca acima de R$ 50 pelo conjunto das 52 obras, ricamente transportadas para o formato CD, custando ao consumidor menos de R$ 1 cada uma. E prometo: serão todas imortais enquanto você dure.

O arranjo, para qualquer música, é outro ponto que vale ser ressaltado: esqueça o samba-batucada. Em 'Acerto de Contas', você invariavelmente vai deparar-se com pouquissimos recursos de percussão e ausência total de coro e de pastoras. O apogeu da obra não reside na medida da exaltação do refrão, mas sim na discrição do papo amigo, na queixa e no 'presta atenção' quase confidencial (Levanta/ Sacode a poeira/ E dá a volta por cima). Todos elegeram, como sua morada definitiva, o samba de Paulo Vanzolini.

Para ir além
Resumo de ficha técnica dos discos 'Acerto de Contas':

Intérpretes: Paulinho da Viola, Márcia, Eduardo Gudin, João Macacão, Carlinhos Vergueiro, Chico Buarque, Elton Medeiros, Cristina Buarque, Ana de Hollanda, Miucha, Ana Bernardo, Inezita Barroso, Paulinho Nogueira, Trovadores Urbanos, Virginia Rosa, Edú Maia e Maria Marta.

Músicos participantes: Italo Peron (violão), Zé Barbeiro (violão 7 cordas) , Milton de Mori (bandolim), Stanley (clarinete), Prata (flauta), Marcelo Galani (percussão), Arnaldinho (cavaquinho), Wellington Moreira (percussão), Bombarda (acordeon), Isaias (bandolim), Bocato (trombone), João Macacão (violão 7 cordas ) e muitos outros.

Direção e produção musical: Italo Peron
Arranjos: Italo Peron
Projeto gráfico: Eduardo Musa, Silvia Amstalden Franco e Taís Tsukumo.
Ilustrações: Francisca do Val.
Gravado no Estúdio Flautin 55, São Paulo, de março a outubro de 2002.

Waldemar Pavan
São Paulo, 28/1/2003

 
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