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Segunda-feira, 11/7/2005
O fenômeno mundial dos podcasts
André Lemos

Brecht, nas suas Teorías de la Radio de 1932, buscava transformar o rádio em um instrumento de comunicação bidirecional, que fizesse com que cada ouvinte se tornasse também um produtor de informação. Brecht queria uma “rebelión por parte del oyente, su activación y su rehabilitación como productor”. Para o dramaturgo alemão “la radiodifusión debería en consecuencia apartarse de quienes la abastecen y constituir a los oyentes en abastecedores”. Parece que seu sonho, a sua utopia de reabilitação dos ouvintes como produtores se realiza com o fenômeno mundial dos podcasts. Embora não seja como o rádio que conhecemos hoje, com emissão centralizada e difundindo massivamente programas em streaming, o podcasting usa o formato e a metáfora para fazer com que qualquer um seja produtor de emissões sonoras. Essa é mais uma expressão da cibercultura como liberação do pólo da emissão.

Podcasting
O sistema de produção e difusão de conteúdos sonoros conhecido como podcast surge no final de 2004. O nome é um neologismo dos termos “iPod” (tocador de MP3 da Apple) e broadcasting (transmissão, sistema de disseminação de informação em larga escala). O termo não parece ser muito bom, já que não é necessário um iPod (qualquer tocador de MP3 serve) e não se trata de broadcast, mas do que podemos chamar de webcast. A Wikipedia define podcasting como “a method of publishing sound files to the Internet, allowing users to subscribe to a feed and receive new audio files automatically. Podcasting is distinct from other types of audio content delivery because it uses the RSS 2.0 file format. This technique has enabled many producers to create self-published, syndicated radio shows”.

O podcast é assim um sistema de produção e difusão de arquivos sonoros que guardam similitudes com o formato dos programas de rádio. O sistema funciona da seguinte forma: com um computador doméstico equipado com um microfone e softwares de edição de som, o usuário grava um programa (sobre o que quiser), salva como arquivo de som (MP3, por exemplo) e depois torna-o disponível em sites que são indexados em agregadores RSS (Really Simple Syndication). O usuário baixa o arquivo para o computador e daí para seu tocador de MP3. O sistema, criado pelo ex-VJ da MTV americana Adam Curry, pressupõe a cadeia completa de produção e de distribuição. Podcasting é esse conjunto de tecnologias para produção e distribuição de conteúdo sonoro. Como em outras formas de produção da informação na cibercultura, aparecem problemas de direito de autor (uso de músicas nos podcasts, por exemplo). O interessante seria a emergência de programas com licenças de uso do tipo Creative Commons que garantisse os direitos e as possibilidades de uso livre do conteúdo produzido. Poucos são os podcasts que usam essa licença.

O fenômeno é recente, mas em crescimento vertiginoso. Em menos de seis meses de existência, já podemos encontrar no Google mais de 4.940.000 referências para a palavra podcasting. Estima-se que há mais de 6 milhões de usuários do sistema no mundo. No Brasil, os podcasts começam a surgir em 2005, e hoje podemos contar algumas dezenas, estando, também, em crescimento geométrico. Pesquisa realizada pela Forrester estima que existirá, até o fim do ano, mais de 300.000 podcasts e até 2009, 13 milhões.

Há vários tipos de podcast, na maioria temáticos: tecnologia, arte, cultura, economia, notícia, literatura, música... Um exemplo interessante é o Sound Seeing onde pessoas fazem roteiros não-oficiais de museus. Você pode baixar o roteiro, colocar no seu tocador de MP3 e fazer a visita ouvindo guias não-oficiais. Outra experiência interessante é a da BBC que criou a BBC Radio Podcasts como mais de 20 programas disponíveis. Trata-se, nesse caso, de uma reação e de um reconhecimento da importância das novas mídias por um gigante do broadcasting. Rádios comerciais já estão buscando formas de fazer dinheiro com os podcasts. Religiosos também utilizam a tecnologia com os Godcasts, podcasts de cunho religioso utilizados por diversos cultos (católico, judeu, budista) para manter contato e ampliar o número de fiéis. O leque de opções é crescente e bastante diversificado, tanto em relação aos temas, quanto aos países ou línguas.

Liberação das emissões sonoras
Parece que o que está em jogo com mais essa expressão da cibercultura é a própria redefinição da indústria cultural massiva, no caso, a reconfiguração do “rádio”. A questão que sempre se coloca (com o open journalism, com os blogs, com os softwares livres, etc.) é se estamos diante, ou não, da criação de um novo gênero de produção, de novos processos de comunicação e de publicação. Será que podemos chamar de “rádio” arquivos MP3, com formato de emissão radiofônica, gravados por qualquer pessoa e disponibilizados na internet por meio de blogs e sistemas RSS para transmiti-los a um grupo de assinantes? O mesmo podemos argüir em relação aos diários virtuais (diários?) ou aos jornais on-line (jornal?). A analogia é com a mídia massiva rádio, mas não seria apenas mais uma metáfora?

Matéria de capa da revista Wired de março de 2005 estampava “The end of radio (as we know it)”. A revista referia-se aos novos sistemas de emissão radiofônica, entre eles o podcast. Vemos aqui um duplo erro, comum nas análises mais apressadas da cibercultura: o fim do meio analógico e massivo; a sua substituição por outro digital e personalizado. Primeiro, não é o fim do rádio como meio de comunicação. O podcast só tem a acrescentar aos diversos formatos broadcasting. Segundo, tampouco é o fim do rádio como nós o conhecemos hoje, em seus formatos AM e FM. O que estamos vendo é uma reconfiguração midiática em que ambos os formatos permanecem e têm seus nichos de usuários assegurados. É muito bom poder baixar um programa à la carte, mas também é muito bom ouvir um programa massivo no carro ou os comentários dos jogos de futebol nos estádios em tempo real com um radinho de pilha. Usuários com papéis diferenciados, funções diferenciadas e mídias diferenciadas. Não se trata da substituição de um formato por outro, já que os dois sistemas suprem necessidades não-concorrentes: o rádio massivo coloca o ouvinte em sintonia com uma esfera coletiva; a emissão personalizada permite escolhas de acordo com o gosto pessoal, além de um controle do espaço e do tempo da audição.

Chegamos aqui ao cerne de uma das leis da cibercultura: a lógica da reconfiguração. Não se trata, nos diversos fenômenos contemporâneos, de extinção ou aniquilamento de formatos e meios. A atual revolução das formas de emissão sonora pela tecnologia digital e pelas redes telemáticas não irá fazer desaparecer o rádio massivo (AM ou FM, mesmo que a forma de emissão seja digital). Poderíamos até pensar, em um futuro próximo, em um tocador conectado diretamente à internet. Nesse caso não estaríamos voltando ao streaming das atuais rádios AM/FM? No caso da emissão de rádio massiva e da emissão à la carte do podcast, mantém-se desejos de personalização e de customização que os dois modelos oferecem de forma a enriquecer a paisagem comunicacional contemporânea. A questão é complexa e exige um pensamento que não funcione por exclusão, mas por adição. A lógica da cibercultura não é o “OU” mas, sim, o “E”.

Trata-se efetivamente de liberação do pólo da emissão. Na atual cibercultura, blogs, fóruns temáticos, sistemas peer-to-peer de troca de arquivos, softwares livres, podcasts, softwares sociais, como o Orkut, e tantas outras práticas contemporâneas, atestam essa hipótese. O suposto excesso de informação nada mais é do que a emergência de diversas vozes, exprimindo-se sobre diversos assuntos, e sob diversos formatos, distribuídos ao redor do mundo. Outra característica importante em questão é o princípio de conexão, o compartilhamento de experiências, arquivos, softwares em rede. Estamos vendo esse tripé em ação com os podcasts: 1) liberação do pólo da emissão (ouvinte-produtor); 2) princípio de conexão: distribuição por indexação de sites na rede (RSS) em conexão planetária; e 3) reconfiguração dos formatos de emissão de conteúdos sonoros (em dois pólos: o “faça você mesmo” a sua rádio; e as rádios massivas criando programas em podcasting, como a BBC).

Brecht, se estivesse vivo, talvez nos oferecesse um podcast seu, que provavelmente daria, a cada usuário, a possibilidade de ouvir leituras de suas peças ou de grandes dramaturgos. Ou, com certeza, ele estaria muito feliz vendo sua utopia concretizada na atual difusão sonora dos podcasts, onde os que eram apenas ouvintes transformam-se em produtores de informação. A cibercultura está fazendo de cada receptor (espectador, ouvinte, leitor) um produtor em potencial de informação, tornando mais rico e complexo o ambiente comunicacional contemporâneo.

Nota do Editor
André Lemos é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea da Facom/UFBA, também autor de Olhares sobre a Cibercultura. Este artigo foi originalmente publicado na revista 404notfound e reproduzido aqui com sua autorização.

André Lemos
Salvador, 11/7/2005

 

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