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Segunda-feira, 17/7/2006
20 anos do Dois
Alexandre Matias


Dois é o consenso. Pergunte a cada um dos fãs do Legião Urbana qual seu álbum favorito e aparecerão turmas para quase todos os discos. Uns escolherão o primitivo Que país é este?, outros ficam com o pacífico As quatro estações, alguns preferem o doce O descobrimento do Brasil, uns o hermético e denso V ou o triste A tempestade ou o Livro dos dias, outros ainda o leque pós-punk que era o primeiro disco do grupo. Mas todos confirmam o respeito e a devoção ao disco pardo, à capa ocre que tornou-se bege no CD, com o nome do grupo imponente como uma placa de escritório de advocacia (ou exército romano, como o próprio grupo deixava entender ao usar o slogan Urbana Legio Omnia Vincit) e nome do disco escrito apenas em alto relevo, à moda do nome dos Beatles na capa do Álbum branco.

Porque é ali que o Legião deixa de ser mais uma banda de Brasília para se tornar o maior grupo da história do rock brasileiro, um nome tão importante quanto grande, que coloca o trio (na época, quarteto) – Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos – no patamar ao lado de outro trio, os Mutantes. Juntos, os dois grupos cumprem o papel que os Beatles exerceram no imaginário mundial. Enquanto os Mutantes experimentavam e alucinavam as possibilidades sônicas e pop de seu rock'n'roll, o Legião traduzia em sentimento o inconsciente coletivo de mais do que uma geração, de uma forma de pensar geral, sem nunca abrir mão da sofisticação e da popularidade. Qualidades que faziam o nome que o grupo escolheu para si mesmo não apenas adequado quanto inevitável – e passível de trocadilho devido à forma que os ouvintes do grupo tratavam a música, como uma religião urbana.

Antes de Dois, o grupo havia sido um dos muitos grupelhos que brotaram com o nascimento do punk. Batizado Aborto Elétrico, o grupo contava com a cozinha do que viria ser o Capital Inicial (os irmãos Fê e Flávio Lemos) e guitarra e vocais de Renato Russo, o esquisitão da chamada Turma da Colina. Estes eram os primeiros punks de Brasília, personagens que comporiam o núcleo da invasão brasiliense que o rock brasileiro atravessou em meados dos anos 80. Ao lado do Aborto Elétrico, grupos como Blitz 64, XXX e Dado & o Reino Animal (este com Dado e Bonfá na formação) se tornariam a base para a tríade emblemática da cena candanga: Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude.

Mas depois do Aborto, Renato apresentava-se sozinho. Autoproclamado "trovador solitário", o futuro legionário abria shows dos amigos cantando sagas gigantescas ou fazendo terapia ao microfone. Usava apenas o violão para acompanhar sua voz, potente o suficiente para que este substituísse o grito arrancado da garganta pela nota suspensa, parada no meio da boca. Segurando as vogais finais de suas canções até o limite, Renato percebia o poder emocional que este truque tinha e que este era semelhante à quebra de instrumentos ou a berros rasgados.

Fundiu o punk primitivo com a forte voz com as influências pós-punk de Dado e Bonfá (que, acreditem, ouviam PiL, Fall, Krautrock, Joy Division e Cabaret Voltaire – transformando Dado e o Reino Animal em uma banda tribalesca e experimental) e nascia o Legião Urbana. Com a adição de Renato Rocha – o Negrete – ao baixo, liberando Russo para eventuais teclados e violões, estava formado o grupo que mudaria o rock nacional de uma forma que o país nunca havia visto.

O primeiro disco do grupo, produzido pelo jornalista José Emílio Rondeau, era um panorama das influências confessas do quarteto, que encarnava alguns de seus ídolos em cada uma das faixas. Dos Dead Kennedys (“Geração Coca-Cola”) à Gang of Four (“A dança”), passando por Undertones (“Baader-Meinhoff Blues”), Buzzcocks (“Teorema”), U2 (“Ainda é cedo”), Clash (“Petróleo do futuro”) e a gravadora 2Tone (“O reggae”), todas as principais influências da primeira fase do grupo (que seria retomada no terceiro álbum, Que país é este?) estão estampadas por meio das canções.

Mas foi uma referência externa que chamou atenção do público. O estilo trovador da voz de Renato foi entendido como uma nova fase do cantor Jerry Adriani, fazendo com que “Será” – o primeiro sucesso do grupo – fosse confundida com uma canção do velho jovem guarda. A confusão veio a calhar para o conjunto, que logo passou a freqüentar as paradas de sucesso. O disco branco do grupo (enfeitado com figuras em relevo – o Congresso Nacional, um índio e um anel de lata de cerveja – e gravuras de enciclopédia de História) era descoberto por um hit, mas apresentava a três gerações ao mesmo tempo sentimentos e observações que passavam despercebidos ao rock nacional. Como boa parte do rock dos anos 80 no Brasil, o Legião falava do cotidiano, da vida rotineira, de coisas palpáveis. Mas diferente de todos os outros grupos de sua safra, misturava isso com religião, política e música pop, criando um universo de conceitos que se tornaria marca registrada do grupo. Dois confirmaria isso. Aguardado pelos primeiros fãs do grupo como a segunda vinda do messias, o disco de 1986 marcou o início do casamento sonoro com o produtor Mayrton Bahia, que ajudou o grupo a talhar e polir seu som.

"Brigar pra quê, se é sem querer?" berra Renato Russo numa gravação vagabunda. Depois do ruído, a bateria de Bonfá abre oficialmente o disco, perseguido da hoje clássica seqüência de notas palhetada por Dado Villa-Lobos. O baixo de Negrete acompanha nos espaços vazios, às vezes preciso, às vezes evasivo. Ao citar o trecho de “Será” antes de “Daniel na cova dos leões”, Russo explica o caminho escolhido. Musicalmente, o grupo abandona o punk e passa a abraçar o rock num sentido mais amplo, mais melódico, mais poético (soando, como todos que seguiram este caminho, como os Smiths, o U2 e o R.E.M.) – se as brigas não eram pra valer, elas não adiantavam. Então o vocalista opta por pregar, em vez de brigar. Mas querendo não soar messiânico (adjetivo inevitável ante as apresentações do grupo), Renato resolve abrir mão do sentido direto das letras, abrindo margem para diversos tipos de interpretações.

“Daniel...”, que abre Dois, é um perfeito exemplo disso. A canção falava de sexo oral ("Aquele gosto amargo do seu corpo/ ficou na minha boca por mais tempo") e homossexualismo ("Teu corpo é meu espelho e em ti navego"), mas isso não é claro. Russo atravessa toda canção usando metáforas para a instabilidade emocional e a procura de um sentido, "Tão certo quanto o erro de ser barco a motor e insistir em usar os remos", "Ainda era muito e muito pouco", "O teu medo de ter medo de ter medo não faz da minha força confusão", "A insegurança não me ataca quando erro". Canta acompanhado de um teclado insistente, que filtrará quase todas as músicas de agora em diante. O antisolo de guitarra é o último adeus ao pós-punk, cujo caixão na carreira do grupo é fechado com o pesado acorde de piano que "mata" a primeira fase do grupo.

Começa a nova fase. É o violão de “Quase sem querer” entrando e pedindo espaço. "Tenho andado distraído/ Impaciente e indeciso/ E ainda estou confuso só que agora é diferente/ Estou tão tranqüilo e tão contente" – a contradição emocional é uma espécie de assinatura de Renato Russo; e quem nunca passou por estas situações? E ele continua, "O que eu mais queria/ era provar pra todo mundo/ que eu não precisava/ provar nada pra ninguém", "Sei que às vezes uso palavras repetidas/ Mas quais são as palavras que nunca são ditas?", "Mentir pra si mesmo é sempre a pior mentira", "Já não me preocupo se eu não sei por quê", "Não sou mais tão criança a ponto de saber tudo". Equilibrando sentidos e palavras diferentes em sentenças que confirmam a incerteza, ele ganha os ouvintes, pouco a pouco. Encerrando a faixa, Russo e Dado compensam a eletricidade com pequenos e curtos solos ao violão, ao melhor estilo Violent Femmes.

Depois o baixo entra marcando o tempo com a bateria, enquanto a guitarra pinta texturas sonoras. “Acrilic on canvas” usa referências de artes plásticas para desconstruir uma relação que chegou ao fim. Momento menor da poesia do Legião, o clima é claustrofóbico e tenta emular a confusão mental do protagonista. Em oposição à “Acrilic...” entra um dos maiores sucessos do grupo, a quilométrica “Eduardo e Mônica”, uma balada do tempo em que Renato era o "trovador solitário". Nela, ele toca todos os instrumentos. Historinha de amor entre pólos distantes, ela conta o começo da relação entre o pueril Eduardo ("o boyzinho que tentava impressionar") e a veterana Mônica (que "gostava de Bandeira e do Bauhaus, Van Gogh, Mutantes, Caetano e Rimbaud") sem tentar soar romântico ou poético, com palavras simples e clima de bate-papo. As duas personagens podem ser vistas como representações do próprio Renato Russo: de um lado, o tímido filhinho de papai; do outro, uma pessoa vivida, experiente, equilibrada, alternativa, intelectual. No começo e no fim da canção, o letrista volta a se contradizer para explicar – "Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?" – e depois confunde ainda mais, novamente para esclarecer – "E quem irá dizer que não existe razão?". O interlúdio “Central do Brasil” com violão, baixo e guitarra consegue capturar a beleza da monotonia urbana com mais precisão que as lentes de Walter Salles Jr. – e mesmo sem fazer referência alguma (a não ser no título) a isso.

Entra “Tempo perdido”, o primeiro hit do álbum, prima de “Será”, do primeiro disco. Sobre a frase na guitarra que é símbolo da canção, Renato canta novamente sobre rebeldia e insegurança, sobre o medo de deixar passar a essência da juventude. "Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou", "Sempre em frente/ Não temos tempo a perder". É também uma declaração de amor à juventude, ao mesmo tempo que outra de repulsa ao que é velho - "Nosso suor sagrado é bem mais belo que esse sangue amargo/ E tão sério/ E selvagem". No clipe, o grupo intercalava imagens de ícones que o rock perdeu para o desgaste da juventude – como John Lennon, Syd Vicious, Brian Wilson (que não morreu, mas sofreu um colapso mental), Brian Jones, Jimi Hendrix –, enquanto uma faxineira varre jornais velhos no chão. Mas o final é de esperança: "Temos nosso próprio tempo", "O que foi prometido, ninguém prometeu/ Nem foi tempo perdido/ Somos tão jovens". A canção e o lado A terminam com a introdução de “Tempo perdido” revisitada – sintomaticamente, acústica.

“Metrópole” e “Plantas embaixo do aquário” são ecos do primeiro disco, gritos punks contra a burocracia e a guerra. A primeira é visceral e agressiva (mesmo quando o vocal entoa "ordens são ordens" num clima de monotonia orwelliana) e a outra é lenta e sinuosa, uma das canções mais subestimadas do disco. Nela, o grupo está mais otimista que nunca, dando dicas para fugir da mesmice e da violência (fruto da mesmice, segundo o pensamento legionário): "Aceite o desafio e provoque o desempate/ Desarme a armadilha e desmonte o disfarce/ Se afaste do abismo e faça do bom senso a nova ordem". Ironicamente, a banda mostra o quanto as palavras podem ser evasivas ao entoar, repetidas vezes, o refrão monocórdico "Não deixe a guerra começar". Isso logo depois de uma passagem em que vários vocais em idiomas diferentes são sobrepostos, criando um caos de idéias e vozes.

“Música urbana 2” é o lado escuro de “Central do Brasil”. Somente ao violão, o líder do grupo ouve música urbana "em cima dos telhados, nas antenas de TV", nos "mendigos com esparadrapos podres", "nos bares", em "motocicletas querendo atenção às três da manhã", "nos pontos de ônibus", nos "uniformes", "favelas, coberturas, quase todos os lugares". E encerra a faixa, explicando que não é a voz da razão: "Não há mentiras nem verdades aqui/ Só a música urbana".

O melhor e mais delicado momento de Dois está em “Andrea Doria”, seja nas progressões de acordes da introdução, seja na placidez da melodia, na forma que a insegurança é tratada, no vocal de Renato, na guitarra de Dado, no arranjo sentimental – toda música é de uma beleza que só retornaria ao Legião entre o V e O descobrimento do Brasil. "Às vezes, parecia que, de tanto acreditar em tudo que achávamos tão certo, teríamos o mundo inteiro e até um pouco mais", "Às vezes parecia que era só improvisar e o mundo então seria um livro aberto" – a utopia da juventude (e do rock, e do punk) é descrita com rara precisão. Com a mesma acuidade ele descreve a desilusão – "agora teu sorriso vem diferente, quase parecendo te ferir". E detecta o ponto desta frustração – "Quero ter alguém com quem conversar/ Alguém que depois não use o que eu disse contra mim" – e mostra o caminho a ser seguido – "Nada mais vai me ferir/ É que eu já me acostumei com a estrada errada que segui e com a minha própria lei".

“Fábrica” recupera o vigor de “Daniel na cova dos leões” para cantar uma letra simples sobre a luta de classes. "Índios" (entre aspas, como os "Heroes" de David Bowie) é o epitáfio do disco, que sacramenta o novo Legião Urbana. Reta, ela vai crescendo aos poucos, acompanhada por teclado, baixo e bateria, sem se prender ao formato tradicional da canção. O tema, novamente, é a dor do tombo do romântico, o sonho acordado de forma brusca, da pureza maculada – "Quem me dera ao menos uma vez, como a mais bela tribo dos mais belos índios, não ser atacado por ser inocente". O mais próximo de um refrão fala em desespero adolescente ("Eu quis o perigo e até sangrei sozinho/ Entenda – assim pude trazer você de volta pra mim"), a revelação do óbvio ("Quando descobri que é sempre só você que me entende do início ao fim") e um novo jogo de palavras que conclui uma triste realidade ("E é só você que tem a cura para o meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto de tudo que ainda não vi"). O final do disco não é animador ("Nos deram espelhos e vimos um mundo doente"), mas a última frase traz uma ambigüidade que, novamente, confunde em vez de explicar – "Tentei chorar e não consegui". Por que não conseguiu? Por que chorar é inútil? Ou por que não há por que chorar? A única coisa certa ao final de Dois é o violão quase onipresente, que fecha o disco melancólico. Depois de Dois, o Legião voltaria às raízes com Que país é este? para fechar sua primeira fase definitivamente. Mais tarde, em As Quatro Estações, abraçaria a filosofia e a religião como alternativas às metáforas cotidianas – mas sem abandoná-las. V traria um grupo pesado, obtuso e difícil – mas um disco perfeito, para os poucos que tentaram atravessá-lo. Como O descobrimento do Brasil, belo e leve, em contraponto ao disco anterior. A carreira do grupo seria fechada com o pessimista A Tempestade. Mas tudo que o Legião Urbana fez depois já estava em Dois. E nem sou eu quem diz isso. É o próprio Renato Russo.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no site Gafieiras.

Alexandre Matias
São Paulo, 17/7/2006

 

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