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Segunda-feira, 6/11/2006
Sobre John Cage
Eduardo Barrox


John Cage Shoes (1977)

Tempos atrás – quando você falava de música – de alguma forma dizia sobre o tempo; enquanto a pintura também se referia ao espaço, assim como (desde a Bauhaus?) o design estabelece a relação de convivência entre o ser humano e o objeto. De uns tempos pra cá (OK, a partir da segunda metade do século XX), se começou a criar uma espécie de ergonomia a partir da música experimental. Isso aconteceu ao se criar as relações entre os diversos códigos (na arte), verbal, musical e visual. Desde a modernidade, a maioria das linguagens é híbrida. Tempo e espaço são experimentados e se criam novas linguagens; a experiência para o ouvido e a emoção tátil para observar o som. Agora tem um monte de gente que faz isso, mas o conceito se explica melhor se você olhar e ouvir o trabalho de John Cage.

Nascido em 5 de setembro de 1905 na cidade de Los Angeles (não existem coincidências, né? não por acaso, eu acho, por volta dessa data – neste esquisito ano de 2006 – Delia, Camaleoa, Jader, Luiz e eu passamos um fim de tarde numa sala de projeção do Instituto Tomie Ohtake, durante a exposição Fluxus, para ver e ouvir um filme com uma peça dele...), Cage foi aluno de Schoenberg e Boulez e morreu na década de 90 nos Estados Unidos. Entre uma data e outra, passou boa parte da vida misturando sons de sirenes de ambulância às notas da, por exemplo, Nona Sinfonia de Beethoven.

Apesar das eventuais reclamações de vizinhos no prédio onde morava, a coisa deu certo. Seu trabalho – pesquisando silêncio e ruído – consistiu principalmente em (tentar) nos livrar dos sons tradicionais, das harmonias, melodias e ritmos, nos oferecendo a experiência do som livre de quaisquer dependências através de uma espécie de sinfonia dadá.

Quer dizer, John Cage insistia que tudo o que estamos acostumados a ouvir e chamar de música não é necessariamente assim. Em outras palavras, a partitura (tal como a conhecemos) nem sempre era uma coisa importante em uma audição musical. Enfim, o que ele fazia, desde a década de 50, e fez o tempo todo nas décadas subseqüentes, foi brincar com as sonoridades, assim como Lewis Carroll foi um brincalhão das letras e palavras, assim como os dadá(s) faziam com quase tudo e todos.

Resumindo, em algumas partituras Cage utilizou-se de desenhos para estabelecer a relação intersemiótica com o som que ele queria ouvir. Ele também questionou a noção de tempo e espaço, e obviamente teve a vida facilitadíssima com o advento das fitas de gravação e depois com os computadores nos quais podemos gravar o presente (para ser usado no futuro, etc.). Cage já chegou a trabalhar com computadores desde o final dos anos 80, mas fico imaginando o que esse sujeito não iria estar fazendo agora, com toda essa parafernália que anda por aí e todas aquelas idéias na cabeça?

Enfim, o trabalho dele se caracteriza pelos desenhos nas partituras: na do Concert for Piano and Orchestra (1957-58) – solo de piano – é possível ver desenhos que tecem visualmente o som e libertam os ouvidos. Da mesma forma, inspirou-se em desenhos feitos no século XIX por David Thoreau pra compor Renga há exatos trinta anos atrás, em 1976.

Quando veio ao Brasil para uma das bienais de arte, Cage disse que não tinha ouvido para música e que nem consegue ouvir coisas quando lê sua notações: “Quando escrevo notações”, disse ele, “somente ouço coisas como sirenes na 6ª Avenida, porque tenho muito mais interesse em apontar o que não esteja familiarizado com as pessoas”.

Verifica-se, portanto, que Cage quer nos desacostumar do dia-a-dia. Ou melhor, incorporar musicalmente esse dia-a-dia, possivelmente com a intenção de torná-lo lúdico e não massacrante. No que faz (e nós faríamos) muito bem.

Mas ele tinha ouvido para música, sim, fica tranqüila, baby.

Bom, a realidade é uma coisa que depende de quem a observa (sic). Cage não só a observava, como contou o que viu. Fez isso usando desenhos em computador, lendo Joyce (Finnegans Wake, por quê não?), modulando a voz como nas preces budistas e concluindo que “somos o que experimentamos”. Desta forma – e isso eu acho que todo mundo já sabe, mas sempre é bom recordar – a arte gera mudanças na nossa maneira de perceber a realidade. Para Cage, o passado e o futuro estão contidos no presente (e também é por isso que ele não curtia as gravações de disco, justamente porque essa linguagem afastava a possibilidade de "brincar" com o acaso da performance).

Cage mostrou que o objeto não precisa existir, porque não existe necessariamente a convenção. A mente tem que estar livre para entrar e sair do ato de ouvir. Tipo, ouvir cada som do jeito que ele é. E assim se estabelece o objeto. Aquele que não existe, existe assim. No caso, design não intencional; aí o protótipo é a linguagem.

Enfim, em John Cage prevalece a experiência. Os momentos estáticos não têm muita graça de serem observados, mas, sim, a perfomance, a experiência contínua que flui e dissolve os códigos como uma espécie de picadinho de referências culturais. Isso em dança funciona muitíssimo bem, também.

Vai daí que desenhar nas partituras faz parte desse processo performático, a música (assim) é som e ruído de espaço e tempo. É desconstrução, né? Uma das essências (ou ingredientes, ou...) de se fazer Arte.

No caso da música dele, quem se liberta é o público. No filme que a gente viu no Tomie Ohtake, as pessoas da platéia mexem-se incomodadas nas cadeiras do teatro, algo espantadas pela "música". Era assim naqueles longínquos sixties do século XX na Alemanha, assim será daqui 50 anos em algum outro lugar do planeta do século XXI.

Dessa forma Cage ensinou que a tecnologia é uma linguagem. Ele também disse que música eletrônica era som sem intermediação, sem intérpretes, uma coisa sem subserviência ao som que se produz. Como a linguagem, a tecnologia gera um significado na percepção e assim se cria uma espécie de medida para se medir outra medida. Vai daí que deve ser por isso que para ele não interessavam apenas estas medidas, ou as normas, ou os sistemas de subordinação:

“Um bom pianista é aquele que ouve e percebe as mudanças que aparecem no som, e então adapta a música, não com a intenção da destreza, mas em resposta ao som que lhe aparece”.

Essa arte é igual a vida, pô!

É bem claro que, para ele, o design da música tem movimento paralelo aos seus ouvidos; o olhar lê os sons e os ouvidos escutam o desenho. Ou, levando para outras coisas da vida, é um pouco de saber (na fotografia) a cor dos comprimentos de onda quando a lâmpada se acende ou na hora em que o sol se põe. Ou um pouco de todas essas intuições que desconstroem a arte ao construi-la de alguma forma.

Isso posto, essas artes já não precisam ser mais os produtos a serem congelados nos depósitos refrigerados do museu; já que são os organismos vivos que refletem a própria vida. Assim como nos adaptamos às condições climáticas no dia-a-dia, a arte ajuda a compreender esse processo com mais rapidez, quebrando a barreira da educação formal, escravidão cultural, e tal e coisa.

Não importa, portanto, se você foi educado (a) e informado sobre caminhos certos e errados para compreender as coisas da arte. Uma das coisas legais do trabalho do Cage foi justamente fazer com que as pessoas desenvolvessem o próprio sentido e modo de ouvir. E dessem um chute na bunda dos maniqueísmos.

Assim como...

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na edição de outubro do Jornal da Praça Benedito Calixto.

Eduardo Barrox
São Paulo, 6/11/2006

 

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