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Segunda-feira, 19/8/2002
A droga da felicidade
Sérgio Augusto

Sejamos francos: a televisão não foi feita para pessoas como eu e você. Digo isso sem o menor constrangimento e com a certeza absoluta de que a razão está do meu lado. Ouço uma voz me xingando de "reacionário". Deve ser alguém que, de algum modo, vive à custa daquilo que Sérgio Porto apelidou de "máquina de fazer doido". Ou seja, um xingamento interessado, corporativista. A crítica de televisão de um jornal paulistano não qualificou José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, de reacionário, só porque ele dissera, numa entrevista à TV Cultura, que "o perfil do telespectador brasileiro é triste", que "a massa é desinformada, portanto, fácil de iludir", que "a maior parte do público não tem idéia do que está fazendo na frente da TV"? Temos provas diárias disso tudo. Somos uma nação de videotas. Mas não a única. A videotice é uma doença mundial. A televisão, ao contrário do que disse a fina flor dos Ponte Preta, não enlouquece, emburrece. Não falo da TV ideal, mas da que existe ou, se quiserem, da hegemônica.

Se rejeito a pecha de reacionário, a de elitista aceito de bom grado, pois elite, registram os dicionários, é "o que há de melhor numa sociedade ou num grupo". Se você também dá preferência ao que a cultura tem de melhor, se gosta de Mozart e Pixinguinha, por exemplo, e considera Sandy & Junior uma excrescência musical (ou seriam duas?), cuidado: você não passa de um deslavado elitista. Agora faça um exame de consciência e tente se lembrar de quantos programas de TV aberta costuma ver com regularidade e satisfação. Dá para contar nos dedos da mão, não dá? E de um maneta, confere? Das duas novidades que Assis Chateaubriand ofereceu ao país, sou mais o Masp do que a pioneira TV Tupi, seu regalo para as massas, quanto mais não fosse porque outro empresário qualquer acabaria implantando a televisão nestas bandas, e um museu de arte, bem, acho que não preciso entrar em detalhes sobre o desprezo que o nosso empresariado, com honrosas exceções (Moreira Salles, Mindlin), devota à cultura.

Tecnicamente falando, sou um apocalíptico, no sentido que Umberto Eco deu à palavra. Mesmo reconhecendo que se trata de um invento prodigioso, tanto quanto a morfina a televisão teve o seu uso degenerado: virou balcão de negócios, o paraíso do merchandising, o passatempo exclusivo de mentes rombudas e bússola de seu gosto, uma usina de mitos sem pedigree, ubíquos e pateticamente narcisistas. Poderia, e às vezes consegue, ser a prometida "janela para o mundo". Mas só às vezes. Basta consultar a programação ou passar um dia zapeando pelos canais: o lixo impera.

A televisão costuma idiotizar até quem nela aparece. Segundo Millôr, só um idiota se comporta com a maior naturalidade diante de uma câmera de TV. Daí a preferência pelo estilo algo bufônico entre os comentaristas de assuntos ponderosos e profundos, como, para citar só dois casos bem-sucedidos, Paulo Francis e Arnaldo Jabor. Eles precisam ser um pouco atores, um pouco clowns para chamar a atenção para si próprios e tornar interessante o que dizem, pois a TV não suporta conversa mais séria, profunda, consistente. Natural, portanto, que tudo nela descambe para o circo, para a camelotagem de idéias, para o show business. As ordens que os diretores de talk shows transmitem com mais freqüência aos seus entrevistadores são: "Muda de assunto", "Baixa a bola". Claro que o Jô Soares não precisa de tais advertências.

Se você é daqueles que já se cansaram até das entrevistas do Jô e acreditam que a TV por assinatura é um oásis, cuidado, pois muitos oásis não passam de simples miragens – e são cada vez mais fortes os indícios de que a NET & sucedâneos se enquadram nessa categoria. Faz tempo que aboli do meu cotidiano os canais abertos. Cada vez mais, nada de útil ou relevante me ofereciam, o que me impede, por exemplo, de acompanhar a guerra entre o Domingão do Faustão e o programa do Gugu, mas não de lamentar que a imprensa se deleite com as sucessivas tundas que o primeiro tem levado do segundo, mesmo sabendo que a vitória, aparentemente inevitável, do segundo nenhum benefício trará ao veículo. Ao contrário, só forçará o Faustão a baixar ainda mais o nível de seu programa, o que, por sua vez, aumentará a taxa de apelação do show do Gugu, acelerando uma corrida desatinada cuja reta de chegada ninguém sabe onde fica. Pelo fedor, deve estar perto.

Lá fora a TV por assinatura revelou-se um oásis. Tivemos o azar de implementá-la com atraso, sem o Boni no timão global e com a populista Marluce Dias da Silva na boléia de um trator downsizing. Suspeito que, se inaugurada uns cinco ou seis anos antes, quando Boni ainda gastava o que precisa e merece ser investido numa televisão de alto nível, sem concessões, com profissionais do primeiro time e muito bem remunerados, os canais a cabo do sistema Globosat, ao menos estes, teriam usufruído do necessário tempo para se impor como uma alternativa de peso, criando um público cativo e suficientemente numeroso para resistir aos recentes revertérios da economia e sobretudo ao avanço dos brucutus cujo gosto duvidoso ameaça nortear o seu padrão de qualidade.

Nas primeiras pesquisas internas da NET, seus programas de maior audiência eram os jornalísticos, em especial os do GNT, com destaque para Manhattan Connection. Nas duas últimas, a babá eletrônica (Cartoon Network), os esportes (SportTV, ESPN), a sacanagem (Sexytime, o canal da Playboy) e os filmes de porrada (AXN, Telecine Action) tomaram a dianteira. Nessa batida, os canais por assinatura só se diferenciarão dos abertos por serem pagos, transmitidos por cabo (ou satélite) e mais numerosos. Filmes com legendas? Até estes já perigam. Num recente Vitrine, da TV Cultura, uma reportagem, exageradamente isenta, sobre dubladores de filmes entrevistou três ou quatro deles, todos eufóricos com as perspectivas abertas pela TV por assinatura. Um deles chegou a prever este pesadelo: os canais a cabo dominados por filmes dublados. Aos analfabetos, as batatas.

Há quem torça para que a crise de energia imponha alguma profilaxia à videotia, limitando o consumo televisivo, como se vício fosse hábito domesticável e curável compulsoriamente. Só ingênuos como Jerry Mander, autor de Four Arguments for the Elimination of Television, pensam ser possível aboli-la. Ou abrandar sua dependência, como duas vezes, nos anos 70, tentaram em vão os habitantes de Farmington (Connecticut), mantendo seus televisores desligados durante 24 horas. Terminado o turnoff, não deu outra: clique! Na mesma proporção anterior.

A televisão é a cocaína do povo. Onipresente e subliminarmente impositiva, é mais poderosa que os políticos e a Igreja (o que seria dos evangélicos sem as suas emissoras?). Aldous Huxley, e não George Orwell, acertou na pinta: a televisão não é um veículo tirânico, ela apenas nos mata de prazer. A televisão é o soma, a "droga da felicidade", da imbecilização satisfeita, de Admirável mundo novo. Melhor título o apocalíptico Neil Postman não poderia ter dado à sua célebre diatribe contra o veículo: Amusing Ourselves to Death.

O que fazer para compensar sua lavagem cerebral e espiritual? Educar, inocular ou pelo menos atenuar os efeitos do soma, popularizar outras formas de entretenimento e fontes alternativas de prazer e oxigenação mental não seja, como tantas coisas por aqui, um privilégio de poucos. Precisamos democratizar o elitismo.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Bravo!, em julho de 2001.

Sérgio Augusto
Rio de Janeiro, 19/8/2002

 

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