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Segunda-feira, 9/2/2009
Chico Buarque falou por nós
Ruy Castro

Foi no tempo em que os bichos falavam ― 1966, 1967, por aí. Os meninos do Brasil estavam ouvindo "Lovely Rita", dos Beatles. Mas os mais espertos preferiam "A Rita", de Chico Buarque. As duas canções saíram na mesma época, mas as Ritas eram diferentes. A de Lennon e McCartney era uma guarda civil encarregada de fiscalizar parquímetros. Em suma: inglesa. Lennon ou McCartney ― um dos dois, difícil dizer qual ― está a perigo e a fim de Rita. Convida-a para jantar, o que, devido ao inusitado da proposta, Rita não apenas aceita como ainda paga a conta. Ele a leva em casa, ela o convida a entrar e, quando ele pensa que os dois vão acabar na cama, tem de se conformar em passar a noite conversando na sala com ela e as bolhas de suas duas irmãs. Já a Rita de Chico Buarque era muito melhor. Deu o fora em Chico, foi embora e levou seu retrato, seu trapo, seu prato, que papel, uma imagem de São Francisco e um bom disco de Noel. Não levou um tostão porque não tinha, não, mas causou perdas e danos. Ou seja, era uma mulher de caráter. A Rita dos Beatles era uma pata-choca encalhada. A de Chico era safa, despachada e capaz de uma atitude.

Por que tirar os Beatles do baú para se falar de Chico Buarque? Porque os artigos comemorativos dos seus sessenta anos o têm situado apenas no panorama da música brasileira em que ele apareceu, de um jato, já com sete ou oito canções excepcionais ― "Pedro pedreiro", "Olê, olá", "Sonho de um Carnaval", "Fica", "Juca", "A banda", "Amanhã ninguém sabe" e a própria "Rita" ―, assim de repente, sem avisar. Nenhum outro compositor fizera uma espuma desse tamanho ao surgir.

Mas o panorama da música naquele tempo era internacional e pouco favorável à aparição de artistas como Chico. Os nacionalismos musicais estavam sob o fogo cerrado das multinacionais do disco ― já era uma tentativa de globalização, embora não soubéssemos. Todos os países, mesmo os Estados Unidos, começavam a dar as costas à sua música popular e a se converter maciçamente ao iê-iê-iê, na tentativa de fabricar os seus próprios Beatles ou contrafações baratas. Evidente que o Brasil ― musicalmente um dos países mais cosmopolitas do mundo e já em quarto ou quinto lugar entre os mercados fonográficos ― era um candidato natural a aderir. Pois aconteceu que, enquanto isso se dava no resto do planeta, os jovens brasileiros, mesmo os que gostavam dos Beatles, estavam ouvindo também Chico Buarque. E muitos, principalmente os universitários, só ouviam Chico Buarque.

Mais do que seus companheiros de geração, ele pode ter sido o responsável pelo fato de o Brasil ter continuado a produzir música brasileira. O irônico é que, quando surgiu, Chico parecia um paradoxo ambulante. Muito jovem (22 anos em 1966), bonito (os olhos cor de ardósia já provocavam desmaios, só que em garotinhas), pinta de genro dos sonhos, usava camisas quadriculadas e promovia um boneco de feltro preto chamado Mug, que, diziam, dava sorte. Tinha todas as ferramentas para ser um herói da Revista do Rádio ou da Buzina do Chacrinha, fazendo par com Martinha ou Wanderléa. Pois Chico Buarque, em vez disso, fazia samba.

Não o samba da Bossa Nova, como seria de se esperar de alguém da sua idade, mas o samba tradicional ― música que já era associada aos "mais velhos" e que, com a súbita popularidade do iê-iê-iê gerado por um programa de televisão em São Paulo, parecia condenada ao gueto dos morros e das escolas. Para completar, a temática de seus sambas ― amores de Carnaval, moças suspirando na janela, maridos que chegavam tarde em casa ― também parecia de outra época. Nada a ver com a realidade da sua própria geração, que foi a primeira a se beneficiar da pílula e em que as moças, loucas para se livrar da virgindade, faziam os rapazes de cobaia. Aparentemente alheio a isso como compositor, era como se Chico vivesse e escrevesse em 1930.

Não deu outra. Os "mais velhos", principalmente os críticos ligados ao samba "autêntico", começaram a usar Chico para combater, não o iê-iê-iê, mas a Bossa Nova ou o que restava dela. E ali começou também a mania de esse ou aquele grupo tentar usá-lo como bandeira para afirmar seus pontos de vista.

Nesses quarenta anos de carreira, o que Chico Buarque mais fez, além da música, foi se livrar de tais bandeiras. A primeira foi fácil. Os que queriam transformá-lo no "herdeiro" de Noel Rosa para atacar a Bossa Nova se chocaram quando viram Chico, logo de saída, dormindo com o inimigo. Mas que inimigo? Tom Jobim e Vinicius de Moraes ― logo quem. Assim que o conheceram, Tom e Vinicius se encantaram, viram nele um irmão mais novo e passaram a compor com ele ― o que, pela força musical e poética que os três tinham em comum, era apenas inevitável. Aos que se encontravam com Vinicius nas ruas do Rio, em 1966, e perguntavam, "E aí, Vina, o que há de novo?", o poeta respondia de bate-pronto: "Chico Buarque de Hollanda". E, com Jobim, Chico começou uma parceria que iria render, de cara, a imortal "Sabiá", vencedora do Festival Internacional da Canção de 1968. Aliás, vitória que se deu justamente em cima da simplória, mas infecciosa "Para não dizer que não falei de flores", de Geraldo Vandré, este por sua vez erigido em símbolo da luta contra a ditadura ― o que, por contraste, fazia de Chico um símbolo da "alienação", do conformismo.

Chico Buarque, conformista? Sim, era assim que alguns ainda o viam naquele turbulento ano de 1968, em que se exigia que os artistas tomassem posições "claras" sobre todos os assuntos, do Vietnã à guitarra elétrica e da pílula anticoncepcional à chegada do homem na Lua. A esquerda considerava que suas Januárias e Carolinas eram umas alienadas, porque ficavam na janela espiando a banda passar quando deviam estar nas ruas e nos sindicatos, lutando contra o regime. (Para piorar, o ditador vigente, o marechal Costa e Silva, era declaradamente fã de "Carolina".) Os tropicalistas, por sua vez, viam em Chico o atraso musical e o chamavam de antigo e superado, porque ele não abria mão de fazer sambas caprichados, em vez de partir para o deboche como eles. E os apóstolos do desbunde, que já despontavam dos bueiros, o desprezavam por seu suposto bom-mocismo e por tomar banho todos os dias. Chico nunca comprou essas brigas. Continuou a explorar seu universo lírico (com "Bom tempo", "Noite dos mascarados", "Quem te viu, quem te vê", "Com açúcar, com afeto", "Ela desatinou") e a enternecer os que ainda não se tinham entorpecido pelos dogmas. Sua música falava por si e estava acima de qualquer ideário ideológico, estético ou contracultural.

Mas, como era também inevitável, a ditadura forçou Chico a desafiá-la ― como fez com quase toda a sua geração. Com o endurecimento do regime a partir do AI-5, em dezembro de 1968, a censura começou a marcá-lo em cima, a perseguir suas letras por qualquer bobagem e a tentar tornar sua carreira impraticável. Numa dessas, bateram à sua porta em horas ermas e o levaram ao Ministério da Guerra para uma conversa. Que fim levara o bom moço?

Na verdade, o bom moço nunca existira. Chico foi embora (para a Itália), voltou no pior período (o de Médici, entre 1970 e 1974) e lutou, canção por canção, quase verso a verso, para não ser silenciado. Perdeu batalhas e ganhou outras, e só ele sabe o que essa guerra lhe custou. Mas, por causa disto, foi a nossa vez de usá-lo. A cada samba ou canção novo que soltava, buscávamos sentidos reais ou imaginários nas suas letras e, pela sua engenhosidade e virulência, elas nos vingavam, nos redimiam e nos faziam bem. Nos anos mais sinistros da ditadura, Chico Buarque falou por nós, os covardes ou os que não tinham o seu talento. Não foi o único, é claro, mas era um dos mais visíveis ― e audíveis.

Tudo isso já faz muito tempo. A ditadura acabou há décadas e já acabou tarde. O próprio Chico partiu para outros territórios e é curioso escutar hoje, de novo, suas canções do período. Descobre-se que, naquelas em que percebíamos sentidos ocultos, como "Quando o Carnaval chegar", "Basta um dia", "Gota d'água" ou "Maninha", não há nada, nenhuma mensagem em código, só beleza. Nesse caso, éramos nós, sem saber, que estávamos falando por ele.

E, nas de virulência dirigida e explícita, como "Deus lhe pague", "Vence na vida quem diz sim", "Cálice" ou "O que será", o que restou delas, depois que se evaporaram os inimigos a combater? Ficaram a música, a letra, o acabamento de primeira, o clima, a emoção ― tudo aquilo em que Chico Buarque sempre investiu, alheio à sua ira ou ranger de dentes do momento. Um garoto de quinze anos, que as ouça pela primeira vez e não tenha a menor idéia do que essas canções significaram em seu tempo, ainda assim poderá amá-las ― pela sua inteligência e qualidade lírica intrínsecas, à prova de épocas, folhinhas, relógios.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado em edição especial da revista Contigo, em 2004, e posteriormente no livro Tempestade de ritmos.

Ruy Castro
Rio de Janeiro, 9/2/2009

 

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