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Segunda-feira, 26/10/2009
Vida e morte do Correio da Manhã
Ruy Castro

Os jornais, quando morrem, não vão para o céu. Sobrevivem por algum tempo nos corações e mentes de seus leitores, mas, com os anos, esse amor e memória coletivos vão se dissolvendo. A única sobrevida certa é a de suas coleções na Biblioteca Nacional, onde, dependendo de sua atuação em vida, servirão de pasto para pesquisadores. Mas mesmo isso é relativo: em seu lugar, novos jornais se impõem e, às vezes injustamente, os obscurecem como testemunhas ou agentes da História. Poucos jornais, por exemplo, foram tão importantes no Brasil quanto o carioca Correio da Manhã. Hoje, é provável que os mais jovens, exceto ― talvez ― alguns estudantes de Comunicação, nunca tenham ouvido falar dele. Certamente não é o jornal mais procurado na seção de periódicos da Biblioteca Nacional.

O Correio da Manhã protagonizou na imprensa brasileira uma história gloriosa, começada no dia 15 de junho de 1901. Uma história que, durante boa parte dos 74 anos seguintes, iria alterar várias vezes a vida política do país, inspirar a vocação de milhares de jornalistas e dar aulas diárias de como fazer jornal. Era um jornal do Rio, que o país inteiro lia. Apesar disso, foi também uma história que terminou ― cruel, mesquinha e desnecessariamente ― a 16 de junho de 1975, num leilão em que máquinas, móveis e arquivos (o que restara de um corpo já em decomposição) foram arrematados ao bater de um martelo. É triste que o Correio da Manhã não tenha vivido para comemorar seu centenário. Mais ainda porque seu silêncio, seguido de sua morte (na verdade, assassinato), foi uma consequência do pior período da vida nacional: os anos do Ato Institucional nš 5.

O Correio da Manhã deixou de circular em 1974, mas pode-se datar sua morte de alguns anos antes: 13 de dezembro de 1968. Naquela noite, assim que o locutor Alberto Curi terminou a comunicação do AI-5 ao país pela televisão, agentes do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social) atravessaram a rua e invadiram a sede do jornal. O DOPS ficava na esquina da rua da Relação com a avenida Gomes Freire, na Lapa; o Correio da Manhã ficava na mesma Gomes Freire, em diagonal, a poucos metros da esquina da Relação. Eram vizinhos havia 37 anos, período em que os dois prédios abrigaram Brasis totalmente opostos: o da polícia simbolizava as ditaduras, como o Estado Novo (1937-1945) e o regime militar imposto em 1964; o do jornal pregava a liberdade e a luta contra a mentira e a corrupção. Tal vizinhança nunca o assustara: em sua longa trajetória, o jornal de Edmundo e Paulo Bittencourt fizera oposição a quase todos os presidentes; fora perseguido, fechado, tivera seus proprietários presos, e saíra mais forte a cada embate. Mas, desta vez, seria diferente.

Uma semana antes da noite do AI-5, na madrugada de 7 de dezembro, uma bomba explodira em sua agência de anúncios classificados no térreo do edifício Marquês do Herval, na avenida Rio Branco, no Centro do Rio. A explosão foi tão forte que arrancou vidraças, lambris, mármores e esquadrias de lojas e escritórios em dez andares do prédio. Três toneladas de vidro caíram na calçada da Rio Branco. No solo da agência, totalmente destruída, a bomba abriu uma cratera de mais de um metro de diâmetro, revelando até os ferros da laje. Quem quer que a tenha posto, sabia o que queria: impedir que o jornal continuasse respirando pelos classificados. Isto porque o grosso da publicidade já se reduzira a zero: o governo federal cortara a sua e pressionava os empresários para que não anunciassem no Correio da Manhã. Queriam silenciá-lo por asfixia.

Na invasão do jornal, em 13 de dezembro, seu redator-chefe, Osvaldo Peralva, foi preso no saguão e os censores militares se instalaram na redação, como fariam na de outros jornais. Só que, enquanto a censura a estes foi levantada no dia 4 de janeiro de 1969, a do Correio da Manhã estendeu-se ao dia 6. Quando seus diretores foram comunicados de que a censura estava suspensa, já saíram no dia 7 com uma edição histórica, publicando tudo que não tinham podido noticiar nos 25 dias anteriores: as prisões, as torturas e as críticas da imprensa estrangeira à ultraditadura que se sucedia à ditadura. A edição foi apreendida na oficina.

Por causa dela, a diretora-presidente do jornal, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, foi presa e levada para um cárcere em Bangu, reservado a ladras e prostitutas. Na prisão, Niomar (tão chique quanto corajosa) recusou-se a usar o uniforme da penitenciária, alegando que era presa política, não presa comum. Nas semanas seguintes de prisão, fez greve de fome, sofreu uma tentativa de envenenamento por gás e teve seus direitos políticos cassados. Entre os regimes carcerário, hospitalar e domiciliar, ficou presa mais de dois meses ― período em que a censura voltou ao jornal e, mesmo assim, ele foi ilegalmente impedido de circular por cinco dias. Em março, sangrado de todas as maneiras, o Correio da Manhã pediu concordata. Em setembro, Niomar, ante a alternativa de fechá-lo ou submeter-se à nova ordem, arrendou-o a um grupo de empreiteiros que se comprometeu a recuperá-lo, pagar as prestações da concordata e devolvê-lo saneado à sua dona. Em vez disso, dali a menos de cinco anos, em 1974, esses empreiteiros o deixaram falir e morrer, reduzido a tristes oito páginas. Um ano depois, a massa falida (incluindo o título, que não constava dela) foi a leilão. Nunca mais tivemos o Correio da Manhã.

Do meu ponto de vista, já não o tínhamos desde a noite do AI-5 ― embora eu ainda não soubesse disso quando vi Peralva saindo, preso, pela porta do jornal. Para mim, o Correio da Manhã seria eterno. Era o jornal favorito de meu pai e, antes disso, do pai dele, desde sua fundação por Edmundo Bittencourt, em 1901. Cresci ouvindo histórias de como os governos não toleravam sua independência e, se sempre senti antipatia pelo presidente Arthur Bernardes, foi porque me contavam que Bernardes prendera Edmundo e fechara o jornal durante quase um ano em 1924.

Era o veículo das grandes causas, nem todas vitoriosas, mas sempre honradas. Em 1922, o Correio da Manhã já apoiara o levante dos "Dezoito do Forte". Depois, apoiaria a Coluna Prestes (foi, aliás, quem batizou Luís Carlos Prestes de "Cavaleiro da Esperança"). Apoiou também a revolução de 30, mas logo passaria a combater Getúlio, numa oposição que atravessaria o Estado Novo, apesar da censura e da vizinhança com a polícia. A essa altura, o jornal já tinha o comando de Paulo Bittencourt, filho de Edmundo. Em 1945, seria decisivo para a queda da ditadura, desafiando a censura ao publicar uma entrevista do repórter Carlos Lacerda com o escritor e político José Américo de Almeida, grande adversário de Getúlio. Na República Velha, o Correio da Manhã se habituara a demitir ministros com um editorial. Mas aquela era a primeira vez que ajudava a derrubar um presidente. Não seria a última.

Em 1955, o Correio da Manhã defendeu a posse de Juscelino Kubitschek contra o obsessivo golpismo da UDN. Mas, com Juscelino presidente, foi um de seus piores opositores. Com a renúncia de Jânio Quadros em 1961, o jornal defendeu a posse do vice João Goulart, para também logo tornar-se o seu mais temido crítico (o jornal defendia as "reformas de base" pregadas por ele, mas atacava a demagogia com que estavam sendo propostas). Ao mesmo tempo em que fazia carga contra o governo federal, o jornal era também oposição no plano estadual, colocando-se contra o governo Lacerda na Guanabara ― o mesmo Lacerda que fora seu repórter nos anos 40 e do qual saíra para fundar seu próprio jornal, a Tribuna da Imprensa.

Dois editoriais, intitulados "Basta!", no dia 31 de março de 1964, e "Fora!", no dia 1o. de abril (com redação final e títulos por Moniz Vianna), anteciparam a queda de João Goulart. Ante a falência do governo, o jornal queria o seu impeachment ou renúncia, sempre dentro dos quadros constitucionais. Mas quem tomou o poder foram os militares e, já nos primeiros dias, quando se viu que, desta vez, eles vinham para ficar, o Correio da Manhã foi o primeiro jornal a levantar a voz ― a princípio, a voz isolada de Carlos Heitor Cony, depois seguida por muitos outros. Em 1965, dois repórteres do Correio da Manhã elegeram-se deputados federais pela oposição: Hermano Alves e Marcio Moreira Alves. Em 1968, um discurso deste último na Câmara daria o pretexto para o AI-5, que, por uma conjuntura de fatores políticos e econômicos, acabaria por destruir o jornal.

Dizia-se que o cargo de redator-chefe do Correio da Manhã tinha o peso de um ministério (e um de seus mais longevos ocupantes no passado, o alagoano Costa Rego, fora ministro e governador de seu estado na República Velha). Antonio Callado (duas vezes), Luiz Alberto Bahia e Janio de Freitas foram outros que honraram a cadeira. E quer saber o nome de dois redatores, encarregados de zelar pela famosa "ortografia da casa", precursora dos atuais manuais de redação? Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (sim, o do dicionário Aurélio) e Graciliano Ramos. Uma "ortografia", aliás, fanática até nos pontos mais discutíveis: enquanto os Bittencourts foram vivos, certos nomes não saíam no jornal, como o de Lima Barreto (o escritor) e Juracy Magalhães (o político). Eram desafetos seculares da família.

Apesar da perseguição a Lima Barreto, o Correio da Manhã, muito por inspiração do elegante (educado em Cambridge) Paulo Bittencourt, era um jornal voltado para a cultura. Seu primeiro crítico literário deitou as bases da especialidade no Brasil: José Veríssimo. Em 1921, o sexto centenário do nascimento de Dante foi manchete do jornal. Em todos os anos 40, o pernambucano Alvaro Lins ditou em suas páginas o que valia ou não na literatura. E, em fins daquela década, Niomar, mulher de Paulo, começou a luta pela criação do Museu de Arte Moderna, do Rio, vitoriosa alguns anos depois. O próprio Paulo Bittencourt, aristocrático como ele só, era amigo de Pixinguinha e frequentava a casa do músico em Olaria. Quando Paulo morreu em Paris, em 1963, Niomar assumiu o jornal e lutou por ele até a sua destruição.

Tornei-me jornalista por causa do Correio da Manhã. Era o jornal em que, desde as calças curtas, eu sonhava em trabalhar. Quando entrei, como "foca", levado por José Lino Grünewald, em março de 1967, lá já não estavam Cony, Callado, Janio de Freitas, Otto Maria Carpeaux, Sérgio Augusto e outros heróis dos anos 60. Mas havia Paulo Francis, Franklin de Oliveira, Aluízio Branco, Antonio Moniz Vianna, Edmundo Moniz, Salvyano Cavalcanti de Paiva, Van Jafa, Eurico Nogueira França, José Condé, Germana Delamare, Elizabeth de Carvalho, Maria Claudia Bonfim, Fuad Atala, Mauro Ivan, Arthur José Poerner, Pery Cotta, o cartunista Fortuna e tantos mais. O velho Bueno, o primeiro fotógrafo contratado pela imprensa no Brasil e já com mais de cinquenta anos de Correio da Manhã, continuava lá e era um prazer ouvir suas histórias. Carlos Drummond de Andrade ainda era o cronista (sob as iniciais C.D.A.) e Nelson Rodrigues estava escrevendo suas memórias no "Segundo Caderno" (cuja primeira página, em mais de uma ocasião, dividi com ele). Francis, dublê de editorialista e editor, logo iria assumir e reestruturar o "Quarto Caderno", um suplemento dominical de cultura para fazer inveja ao de qualquer jornal europeu ou americano.

E a redação, no prédio da avenida Gomes Freire (considerada por Callado a melhor em que ele trabalhou na vida), era uma delícia: no coração da Lapa, a dois passos do Centro da cidade e a quinze minutos da Zona Sul, e cercada por restaurantes lendários, como o Capela (depois, Novo Capela), o Brasil e a Leiteria Bol. Alguns habitués do jornal (iam lá para matar o tempo) eram os sambistas Nelson Cavaquinho e Ismael Silva ― os jornalistas mais velhos já não lhes davam bola, mas, nós, os "focas", descíamos com eles para bebericar no botequim ao lado do hotel Marialva, em frente, e esquecíamos de voltar para o jornal.

No dia seguinte ao AI-5, Paulo Francis foi preso e os milicos exigiram sua cabeça. Com a dele, rolou a de todos nós, que compúnhamos sua equipe. Um ano depois, com o jornal na mão dos empreiteiros, alguns de nós, eu inclusive ― mas não Francis ―, pudemos voltar. Fui até, por breve tempo, editor de seu segundo caderno, rebatizado de "Anexo". Mas, em tudo e por tudo, tornara-se outro jornal. Não era mais o Correio da Manhã. Em menos de seis meses, saí e fui cuidar da vida alhures. E, em 1974, estava longe do Brasil, do Rio e da Lapa, quando os empreiteiros o deixaram morrer. Foi um privilégio não assistir à sua agonia.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Parte integrante do livro O leitor apaixonado, coletânea de textos sobre literatura de Ruy Castro.

Ruy Castro
Rio de Janeiro, 26/10/2009

 

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