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Segunda-feira, 1/9/2014
Lembranças de Ariano Suassuna
Leandro Carvalho

Conheci Ariano Suassuna em 1997 quando estive no Recife lançando meu primeiro disco em homenagem a João Pernambuco. Entusiasmado com a pesquisa que vinha desenvolvendo, convidou-me para seguir adiante sob sua orientação. A vontade que tinha de mergulhar no universo da cultura popular nordestina tornava este convite irrecusável e assim passei o ano seguinte me preparando para uma prova de admissão no Departamento de História da UFPE, onde Ariano era livre docente e onde poderíamos "oficializar" este trabalho.

Começamos então um percurso de exploração da música em Pernambuco no inicio do século XIX, guiados pela curiosidade sobre o universo que teria gerado um "gênio da raça" como João Pernambuco. Deliciamo-nos com os relatos dos viajantes estrangeiros que visitaram PE nesta época, como os britânicos Maria Graham e Henry Koster, o francês Tollenare, o pastor norte-americano Daniel P. Kidder, e o germânico Rugendas. Relemos os "Anais Pernambucanos" de Pereira da Costa, as pesquisas do Pe. Jaime Diniz, e nos divertimos com as indignações de O Carapuceiro, editado e redigido pelo Pe. Miguel do Sacramento Lopes Gama entre 1832 e 1850, entre tantos outros.

Tudo isso serviu de alimento para inesquecíveis tardes de sábado, em conversas na cadeira de balanço que se prolongavam até um delicioso lanche no inicio da noite, com direito a queijo coalho de produção própria, vindos de sua chácara em Taperoá. Destes três anos de intenso convívio, nasceria a dissertação de mestrado "'... e o estrepidoso zabumba põe tudo em alvoroço' ― Música e Sociedade em Pernambuco na primeira metade do século XIX", apresentada no Programa de Pós-Graduação em História do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco.

Mas, na verdade, tudo isso era um pretexto para conversarmos sobre o Brasil, sobre literatura, sobre estética e filosofia. Ariano ia descortinando um rico país "real", bem diferente daquele "oficial", caricato e burlesco, como ele dizia se referindo a Machado de Assis. Guiava-me para os núcleos de cultura popular, viva e pulsante, que se espalhavam pela zona da mata pernambucana, e ao seu lado vivi momentos inesquecíveis, como quando os maracatus se encontraram em sua homenagem no "Espaço Ilumiara Zumbi", fundado por ele mesmo alguns anos antes.

Aos vinte anos, quando minha personalidade artística estava em plena formação, tive a oportunidade de conviver com um grande artista, sábio e generoso. Hoje, sem ele, vejo o tamanho deste privilégio e de como foi profunda sua marca em minha alma. Vejo com clareza a importância que tem para nosso país e como será grande nossa responsabilidade de levar adiante suas ideias. Seu exemplo de integridade artística e a música de sua poesia para sempre seguirão em nossos corações.


"A mulher e o reino"
Oh! Romã do pomar, relva esmeralda
Olhos de ouro e azul, minha alazã
Ária em forma de sol, fruto de prata
Meu chão, meu anel, cor do amanhã

Oh! Meu sangue, meu sono e dor, coragem
Meu candeeiro aceso da miragem
Meu mito e meu poder, minha mulher

Dizem que tudo passa e o tempo duro
tudo esfarela
O sangue há de morrer

Mas quando a luz me diz que esse ouro puro se acaba pôr finar e corromper
Meu sangue ferve contra a vã razão
E há de pulsar o amor na escuridão


(Ariano Suassuna)

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Leia também a Entrevista com Leandro Carvalho.

Leandro Carvalho
São Paulo, 1/9/2014

 

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