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Segunda-feira, 3/11/2003
Villa-Lobos tinha dias de tirano
Luís Antônio Giron

Na quinta-feira 2 de junho de 1932, as professoras do recém-instalado Curso de Pedagogia da Música e Canto Orfeônico do Rio de Janeiro, cansadas de receber maus-tratos do compositor Heitor Villa-Lobos, redigiram uma carta anônima ao carrasco. No início dos anos 1930, depois de uma década na Europa, ele esbanjava poder e surtos de estrelismo, mas isso não conteve as ofendidas. "Se continuas a ameaçar-nos com os poderes absolutos de que te prezas faremos uma representação ao Diretor Geral", ameaçam as missivistas. "Não vês que tudo é contraproducente quando o chefe não sabe ter atitudes? Não percebes que as colegas se podem infiltrar desses teus modos estúpidos e passar a fazer o mesmo com as criancinhas?" Encerram o ataque com a indicação: "As professoras revoltadas pelo teu trato".

A folha, datilografada e sem assinatura, encontra-se na Biblioteca Nacional, no Rio (consta do espólio do maestro Sílvio Salema, assistente de Villa), e só agora vem à luz, com outros papéis - recortes, partituras, cartas e fotografias - arquivados ali e no Museu Villa-Lobos. As duas instituições cariocas abrigam documentos que esclarecem a ação e a obra do mais celebrado e executado compositor erudito brasileiro. Com base nos materiais que vêm sendo vasculhados, acontece uma alteração sensível da imagem de Villa-Lobos para a posteridade. O tratado definitivo sobre o assunto ainda está por ser escrito, mas uma horda de pesquisadores corre e concorre para realizar a façanha. Uma silhueta diferente do músico promete delinear-se ao final da competição. Tudo indica que o "índio de casaca", o simpático inspirador da música popular brasileira - e de filmes como Villa-Lobos, uma Vida de Paixão (2000), de Zelito Viana, que reduz o artista à caricatura -, saia do palco para dar lugar ao ditador agressivo, defensor da "arte elevada" contra a música popular - e sobretudo paladino de seus interesses particulares.

Os documentos dão conta de que Villa-Lobos possuía um gênio incontrolável e não recuava ante nenhum tipo de obstáculo. Exemplo disso é a advertência das alunas que constituíam o Orfeão dos Professores sobre sua falta de didática. A carta, se foi recebida (não há evidências a esse respeito), não surtiu efeito, porque o regente defendia como expedientes o rigor para adultos e a palmatória para crianças. Assim aconteceu num ensaio ao ar livre, na frente do prédio de seu Conservatório de Canto Orfeônico, na Praia Vermelha, em meados de 1936. O músico, trajado com uma espalhafatosa casaca colorida, tentava reger um coral de milhares de meninos. Um grupo mais barulhento não se aquietava, nem com a intervenção de um escoteiro encarregado de organizar a multidão. A garotada começou, então, a brigar. "Villa saiu do pódio furioso e acabou com a bagunça, distribuindo cascudos para todo lado", lembra o tal escoteiro, que viria a se tornar o mais importante biógrafo de Villa-Lobos: Vasco Mariz. "Até eu levei um!"

Aos 82 anos, o embaixador aposentado e musicólogo carioca orgulha-se de ter travado relações anos depois com Villa-Lobos e feito sua biografia. Publicada pela primeira vez em 1949 pelo Itamaraty a partir de seis meses de entrevistas com o compositor, Villa-Lobos, Compositor Brasileiro chegará à 12ª edição no próximo ano pela editora Francisco Alves, com acréscimos como cartas, iconografia, os episódios em torno das concentrações orfeônicas e atualização biográfica e discográfica, já que a vasta obra do compositor nunca foi tão executada e estudada no mundo. São duas centenas de gravações recentes, além de 70 livros sobre o artista. A primeira edição da biografia de Mariz desagradou ao biografado por causa da passagem do cascudo. "Villa se distanciou de mim por um bom tempo, porque achava que eu o tinha descrito como violento", revela o biógrafo. "Foi um caso divertido e, quando lhe contei, Villa deu gargalhadas. Ao ler, mudou de idéia. Depois, por meio de sua mulher, Mindinha, fizemos as pazes. Mesmo com modos grosseiros com quem dependia dele, foi muito amado."

Estranho homem esse, capaz de maltratar os alunos, despertar o ódio da crítica, e, ainda assim, ser admirado. Mariz caracteriza-o como um eterno menino, pronto para cometer uma traquinagem ou um gesto ditatorial. Rebate, no entanto, a acusação que lhe fazem os acadêmicos atuais de que era um colaborador do fascismo de Vargas. "Ele não tinha cor política", lembra o estudioso. "Queria divulgar sua música. Vaidoso, não tinha paciência com a mediocridade. Mas, se você soubesse manobrá-lo, conseguia tudo dele."

Para a pesquisadora Mercedes Reis Pequeno, autora da monumental Bibliografia Musical Brasileira (disponível na internet no site www.abm.org.br), simpatizar com o compositor podia ser difícil. "Era de temperamento muito desigual e não conquistava à primeira vista. Muito seguro de seu valor, convencido mesmo, mas ao mesmo tempo, em certas circunstâncias, quase ingênuo. Mas, quando confiava, era para valer. Inimigos, quem não os tem nessa vida?"

O músico lancetou-os com a ponta da batuta afiada - e, às vezes, do taco de bilhar, seu passatempo favorito. Começou por estocar os compositores populares, ou, como preferia, folclóricos. No início da década de 40, por exemplo, chamou o samba-exaltação "Aquarela do Brasil", de Ari Barroso, de oportunista. Escreveu que a música folclórica não passava da "acepção mínima" da música. O que não o impediu de se aproveitar de temas dos chorões com quem havia tocado em noitadas na juventude, como o de "Rasga Coração", com melodia de Anacleto de Medeiros e letra de Catulo da Paixão Cearense, base para os "Choros no. 10" (1925), para orquestra e coro. Por conta da apropriação, ele amargou um processo de plágio, do qual veio a ser inocentado só depois da morte.

"Villa-Lobos não gostava de música popular, como querem muitos estudiosos", afirma o musicólogo Flávio Silva, que há dois anos pesquisa os papéis do compositor e se candidata a ser um dos primeiros a chegar à esperada grande interpretação. "O canto orfeônico formava sua plataforma e seu ponto de honra. Distinguia a 'música elevada' da restante. É engano pensar que ele gostava do som recreativo."

Até hoje raramente abordado, o período em que o músico implementou projeto do canto orfeônico - de 1930 a 1945, os dois primeiros anos em São Paulo e o restante no Distrito Federal - é o mais rico em intrigas, manifestações e atos públicos em torno das idéias do compositor. Aos poucos, ele ganha perspectiva histórica. Também foi o momento em que Villa-Lobos, na chefia da trilha sonora da ditadura Vargas, feriu o maior número de pessoas, de normalistas a críticos profissionais. Recebeu o troco e sua produtividade cresceu na razão direta dos contra-ataques. Ela se revelou tão intensa que ainda hoje estão para ser descobertos discos e partituras que ele produziu com diversos coros. Com uma bolsa da Fundação Vitae, Flávio Silva levantou 20 gravações, inclusive pelo Orfeão dos Professores. "Algumas gravações têm qualidade, e o grupo conseguiu bom desempenho", julga.

O resultado só podia ser obtido pela mão forte do regente, que se fazia sentir no moral das professoras e na moleira da criançada. Seu sonho, ou "plano de ataque", como dizia, era despertar o interesse dos jovens e formar um público para a sua música por meio do canto coletivo. Com o Guia Prático - 137 peças para diversas formações -, desejava espalhar corais pelo Brasil em manifestações cívicas em grandes estádios. A prática coral nas escolas não visava a grandes artistas, mas a preparar o gosto comunitário para uma "fisionomia musical brasileira", como disse em discurso que pronunciou no salão Assírio do Teatro Municipal do Rio em 15 de outubro de 1939, segundo original da Biblioteca Nacional: "Sei bem que o gosto e a opinião pública não se impõem, mas educam-se". O projeto, contudo, murchou aos poucos. Todos os especialistas entrevistados fazem uníssono ao dizer que a situação da educação musical nas escolas brasileiras é péssima, quando não inexistente, e a lição de Villa-Lobos foi esquecida, bem como suas idéias. Ele perdeu a guerra para a música popular por força do rádio, que consagrou o samba e jogou a arte erudita ao segundo plano.

"Villa-Lobos escreveu e defendeu muitas bobagens", diz Flávio Silva. "Poucas idéias dele se sustentam hoje." Sua herança se concentra na obra, embora a maior parte dela ainda precise ser divulgada. O público brasileiro não conhece mais que uma dezena de melodias do compositor - não por acaso, quase todas escritas no período em que o maestro, vulto oficial, tangia professoras e alunos para os estádios.

Inimigos íntimos
Villa-Lobos sofreu ataques desde que começou a apresentar suas peças de vanguarda, no Rio, em 1918. Foi chamado de bárbaro, louco, petulante, autodidata. Durante a Semana de Arte Moderna de 22, em São Paulo, foi saudado pelo público com uma saraivada de batatas. As polêmicas só escassearam no fim da década de 40, quando obteve consagração mundial com suas turnês pelos Estados Unidos e pela Europa e conseguiu calar quase todos os opositores. O maior deles chamava-se Oscar Guanabarino (1851-1937). Esse professor de piano e folhetinista atuou como flagelo do modernismo e do nacionalismo. Fã do canto lírico de Carlos Gomes, iniciou fama de mal-humorado por volta de 1890, ao atacar os primeiros músicos que usavam o folclore em suas peças. Quando Villa-Lobos apareceu com suas suítes sincopadas e dissonantes, o velho crítico fulminou-o com todo o seu arsenal de conceitos. Os dois chegaram a trocar bengaladas em um concerto nos anos 20. Guanabarino atacou-o até morrer. Na coluna Pelo Mundo das Artes, do Jornal do Commercio (uma das últimas a levar a rubrica de "folhetim"), em 1934, comentou uma festa orfeônica organizada pelo compositor informando que "a concorrência foi diminutíssima - apenas 100 pessoas na platéia, se tanto, o que quer dizer que o público rejeita o sr. Villa-Lobos e a sua música, mesmo quando lhe é oferecida gratuitamente". Guanabarino inspirou novos rivais, como Gondim da Fonseca e Carlos Maul (1887-1971). Este último publicou, em 1962, o ensaio A Glória Escandalosa de Villa-Lobos. Ali, acusava o compositor de haver rapinado o folclore. Villa-Lobos achava graça das acusações. A posteridade não as levou a sério.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na revista Época.

Luís Antônio Giron
São Paulo, 3/11/2003

 

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