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Segunda-feira, 12/6/2006
Daniel Galera
Julio Daio Borges


Daniel Galera em foto de Raul Krebs

Daniel Galera é autor do hoje festejado Mãos de Cavalo (Companhia das Letras, 2006, 192 págs.). Estreou na internet como editor do site Proa da Palavra (1997-2000), foi colunista do ezine mais famoso do Brasil, o CardosOnline (1998-2001), e fundou a editora que virou referência em matéria de autores estreantes, a Livros do Mal (2001-2004), em Porto Alegre, junto com Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla.

Galera é também autor do volume de contos
Dentes Guardados (Livros do Mal, 2001 – disponível gratuitamente em versão PDF) e de outro romance, Até o dia em que o cão morreu (idem, 2003). Foi adaptado para teatro por Mário Bortolotto e está sendo adaptado agora para cinema por Beto Brant. Galera ainda mantém o blog Rancho Carne e toca descompromissadamente na banda Blanched. Como tradutor, verteu para o português nomes como Johnatan Foer, Robert Crumb e Irvine Welsh.

A idéia desta Entrevista surgiu a partir da leitura de
Mãos de Cavalo. Por ser um autor que estreou na internet e que atualmente se consagra numa grande editora, Daniel Galera inspirou toda uma discussão que, neste mesmo Digestivo, redundou no Especial Autores Novos. A seguir, Galera fala de tudo isso e mais um pouco (embora prefira discutir menos a vida do que a obra). Conclui, por exemplo, que a fase de editor de livros já passou; revela que gostaria de editar, no futuro, uma revista literária; e afirma que escritor brasileiro não precisa de subvenção do Estado. – JDB

1. Galera, você nem completou ainda 27 anos mas seu currículo é impressionante. Através do seu blog, a gente descobre que você está na internet desde 1996, no mercado editorial desde 2001, atingiu o mainstream com o fanzine eletrônico COL, agora publicou pela Companhia das Letras, foi adaptado para teatro pelo Bortolotto, está sendo, para cinema, pelo Beto Brant... Fora o próprio Rancho Carne e a banda Blanched. As traduções... Como o Roberto Marinho, você acha que está “condenado ao êxito” (título da autobiografia que ele nunca escreveu)? Prefere, como o Lobão, 10 anos a 1000 do que 1000 anos a 10? E, na sua opinião, será estamos todos condenados – na nossa geração – a ser multimídia?

Eu acho que tudo isso soa muito mais impressionante quando é citado dessa forma, em uma minibiografia de um site ou numa pergunta de uma entrevista, do que na realidade. O que posso dizer é que, a exemplo de boa parte da minha geração, me envolvi com a internet desde muito cedo, e com ela sempre consegui divulgar as coisas que fazia, por mais amadoras que fossem. Essas realizações que tu cita me parecem fruto de duas coisas: uso intensivo da internet e um movimento gradual de adaptação da minha vida ao meu gosto pela literatura. Tive fases de envolvimento com música, design gráfico, jornalismo. Ao longo dos anos, fui abrindo mão de certas coisas em detrimento daquilo que realmente me interessava: ler, escrever, publicar, traduzir, tudo que tem a ver com livros. Tive vontade de experimentar com tudo: sites, uma editora, traduções e, agora, a publicação por uma editora grande, na qual cumpro somente o papel de autor. É uma trajetória coerente, mas eu não diria que é composta só de êxitos. Os êxitos são o que eu prefiro mostrar, como é natural. Fiz muita besteira pelo caminho. E acho que sou diferente do Lobão. Mil anos a dez talvez seja mais interessante que dez anos a mil. Bom mesmo é cem anos a cem. Ou oitenta anos a cento e vinte. Por fim, não acho que estamos condenados a ser multimídia, pelo menos não no sentido de atuar criativamente em diversas mídias ao mesmo tempo. Mas saber se movimentar pelas diferentes mídias é importante, nem que seja para dominar o essencial de suas linguagens, técnicas e sutilezas.

2. Fique tranqüilo que não vou te perguntar qual atividade lhe dá mais prazer... (mas você pode responder, se quiser). Vamos caso a caso: no Digestivo, eu sempre achei que o futuro da literatura brasileira estava na internet. Com a edição do Proa da Palavra (1997-2000) e, posteriormente, com os volumes da Livros do Mal, você confirma essa minha impressão? Acha também – como eu disse na minha nota sobre o seu novo livro – que a sua consagração pela Companhia das Letras é o começo da confirmação desses “pressupostos”?

Há muitos novos autores em evidência que não participaram da internet de forma tão freqüente quanto eu (penso em Amílcar Bettega, por exemplo, ou André Sant'Anna, ou Marcelo Mirisola, ou Paulo Scott, que tem um blog mas sempre tocou seus projetos artísticos fora do mundo virtual). Eu não diria que o futuro da literatura brasileira está na internet. Isso dá à internet uma característica que ela não tem, que é sua suposta influência no estilo e no conteúdo da nova literatura. Por outro lado, é natural que a maioria dos autores novos tenha algum tipo de atividade na internet, seja no sentido de publicação, pesquisa ou simplesmente relacionamento social. Não há como escapar. A internet é responsável, talvez, apenas por um aumento gritante do volume de textos produzidos e publicados. Então, a sensação de que novos autores possam estar “saindo” da internet é traiçoeira.

3. Ainda dentro da sua faceta de editor, primeiro na internet, depois em papel, como é, agora, estar “do outro lado do balcão” – já que as atividades da Livros do Mal estão suspensas temporariamente e você acaba de ser editado por uma das maiores editoras do Brasil? Essa experiência anterior, com autores jovens, interferiu na produção do escritor? Quais, a seu ver, são as qualidades e os defeitos dos chamados “autores novos” pós-internet (rótulo genérico no qual acho que você se inclui...)?

A única diferença é que posso me concentrar mais na literatura, sem ter que me preocupar com todas as outras questões que envolvem a publicação de um livro, desde a produção gráfica à distribuição. O que aconteceu foi que a Livros do Mal, por ter sido um projeto bem sucedido, foi tomando proporções que nos obrigaram, eu e o Pellizzari, a fazer uma escolha: ser editores ou ser autores/tradutores. É dificílimo conciliar os dois. E não sei se entendo o que tu quer dizer com “autores novos pós-internet”. Suponho que se refira a autores que começaram publicando na web e depois passaram para meios impressos. Como no meu caso, acho que são autores que usaram a internet para escrever e publicar de forma quase desenfreada, e aos poucos foram concentrando seu foco, tornando-se mais rigorosos. Acho que esse é um caminho natural. Mas há exceções. O Paulo Bullar, por exemplo, que publicamos pela Livros do Mal, foi um autor que desde o início produziu pouco e era muito rigoroso com o que decidia publicar, seja na internet ou fora dela. Portanto, qualquer generalização nesse assunto me parece inexata. Não dá pra enquadrar todo mundo. Essa geração de autores é caracterizada justamente pela imensa riqueza de referências literárias e culturais, que são reelaboradas e recombinadas de maneiras particulares por cada um, com resultados muito diversos. Os autores que acabam se destacando e conquistando um público fiel são os que têm talento e o exercitam com crescente rigor, buscando sua voz no meio de tanta gritaria.

4. Não é uma pergunta sobre “o que lhe dá mais prazer” mas, avaliando daqui para trás, o que você acha que valeu mais a pena para você (ou foi mais interessante): editar on-line, escrever para internet, editar em livro, traduzir ou publicar em livro? São atividades complementares? Se pudesse, você continuaria com todas? Ou escolheria uma única? Por quê? (Pode ser bastante pessoal na resposta, o que vale, aqui, é a sua experiência...)

São complementares. Acho todas elas potencialmente interessantes, mas as coisas acontecem na vida em ciclos, e acho que meu primeiro ciclo de brincar de editor se fechou há um tempinho. Agora estou me dedicando a escrever e traduzir. Talvez eu volte a participar da edição de uma publicação ou me envolver com editoras no futuro, mas não tenho nenhum plano desse tipo agora. Se fosse forçado a escolher uma única, escreveria ficção, para publicar onde quer que fosse. Mas sempre será preciso combinar essa atividade com outras, para poder me sustentar. Isso não é uma sina, um fardo. É como as coisas são. Não acho que ser autor de literatura de ficção seja uma profissão. Pode vir a ser, para algumas pessoas. Mas não parto desse princípio quando escrevo.

5. Agora, saindo um pouco do lado multimídia e entrando nas adaptações da sua obra... Como foi ser traduzido para o italiano? Gostou da adaptação do Bortolotto? O que espera do Beto Brant? E a recepção crítica, ao que você publicou, é o que você esperava? Te afeta (por você estar – ou ter estado – dos dois lados do mesmo negócio)? Talvez possamos resumir todas as perguntas aqui numa só: você se sente compreendido em toda essa trajetória múltipla?

Italiano: foi ótimo, a sensação de ter um livro traduzido e publicado em outro país é muito boa, a noção de que há leitores lá longe lendo o que escrevo. Não houve muita repercussão, mas foi legal. Já conheci dois moradores da Itália que tinham lido meu livro, sem me conhecer. E um sujeito fez um curta-metragem com base num conto meu, em Roma; Bortolotto: a adaptação do Dentes Guardados para o teatro foi excelente, preservou o subtexto dos contos, ficou triste e engraçado. Gostei de tudo, sem restrições; Filme do Beto Brant: não sei o que esperar. O Beto é um diretor muito livre, improvisa, modifica a história ao filmar. Assistirei quando ficar pronto, como se fosse um espectador qualquer; Crítica: já fui mais ansioso em relação à recepção dos meus livros pela crítica, mas hoje em dia encaro com tranqüilidade. Acho que tive uma recepção sempre bem favorável, mais até que minhas expectativas. Mas me alegra mais a recepção dos leitores, sempre, os que vêm falar comigo ou me escrevem por iniciativa própria, seja para criticar ou elogiar; por fim, não sei se sou compreendido, mas sinto que estou conseguindo me expressar, e esse é meu objetivo.

6. Entrando, agora, na tradução... Dá pra viver de tradução no Brasil? Você faria mesmo que não precisasse viver disso? Quais são as peculiaridades de encarar o literário Foer, o visual Crumb, o marginal Bunker, o cinematográfico Welsh e – last but not least – o blogueiro Salam Pax? O que dá mais trabalho: verter todo esse povo para o português do Brasil ou editar, em livro, nossos colegas de geração internet?

Pela minha curta experiência, dá pra viver de tradução, se ela for aliada a outros trabalhinhos eventuais. Se eu tivesse uma situação financeira extremamente estável e tranqüila, acho que traduziria algumas coisas só por gosto. Seria demorado demais entrar nas peculiaridades de cada autor que já traduzi, mas um dos prazeres é justamente mergulhar na voz de outra pessoa e tentar passá-la para o português. É um trabalho recompensador, para mim, mesmo que seja trabalhoso e ameace meus tendões das mãos, braços e ombros. Traduzir é mais fácil para mim do que editar, não porque seja mais ou menos trabalhoso, mas porque o trabalho de editor passa por atividades que não me agradam muito, de caráter mais burocrático e administrativo. Traduzir, por outro lado, é quase como escrever.

7. Entrando na internet, em particular. Você acha que publicações literárias, na Web do Brasil, têm futuro? A WWW vai continuar sendo o suporte primordial para estreantes? Ou ainda há lugar para uma revista literária em papel? Gostaria de participar dela – ou pensa que sua carreira como editor on-line/off-line já se encerrou? Quais foram seus maiores acertos e/ou erros? E os erros e acertos de quem está hoje no mercado (não precisa dar nome aos bois...)?

Acho que há lugar para revistas literárias em papel. A internet não elimina a relevância das publicações impressas. O importante é que elas tenham qualidade, não apenas gráfica, mas também de conteúdo. A idéia de participar de revistas impressas, tanto como autor quanto editor, sempre me agrada. Publicações on-line também. Estou aberto às duas possibilidades. E não consigo discernir meus acertos e erros de forma clara o suficiente para te responder essa parte da pergunta. Posso afirmar que não me arrependo de nada que fiz, seja na internet ou fora dela. O que não significa que não houve muitos erros. Tudo foi e ainda é um aprendizado.

8. Voltando ao mercado editorial. Você é, indiscutivelmente, um autor bem-sucedido hoje. Como vê o “sistema literário” do Brasil? As editoras estão atentas para absorver os novatos ou a sua trajetória é totalmente uma exceção? Existe um “caminho” a se seguir? Que conselhos daria aos editores (e às editoras)? E aos jovens autores? Será que o nosso mercado precisa sempre de alguns visionários, como você, o Pellizzari e o Pilla, para, de vez em quando, dar uma chacoalhada?

Minha trajetória não é uma exceção. Acho que os últimos anos foram interessantíssimos para o mercado editorial. O surgimento de dezenas de editoras pequenas, entre elas a Livros do Mal, chamou a atenção para muitos autores novos, e também para novas maneiras de publicar e divulgar livros, incorporando a internet, fazendo pequenos lançamentos em livrarias legais, aproveitando novas tecnologias e o barateamento das mais antigas, incentivando o boca-a-boca, inovando graficamente. Acho que o grande mercado editorial absorveu um pouquinho disso, e hoje o que se têm é o convívio de pequenas e grandes editoras, publicando uma quantidade inédita de obras e autores. O que falta, talvez, sejam leitores para fazer essa roda girar com mais energia. No meio disso tudo, nada ainda substitui o talento e o empenho pessoal dos autores. Para um autor com algum talento e a determinação necessária, o espaço está aí. As editoras – de todos os tipos e tamanhos – estão atentas.

9. Entrando nas atividades paralelas, ma non troppo. A nossa geração de escritores é uma geração de guitarristas/baixistas/bateristas/vocalistas frustrados? Tem a ver com o Brasil ser tão musical? Todo mundo queria – no fundo, no fundo – ser um rock’n’roll star? E no seu blog, Rancho Carne, é mais um diário mesmo das suas atividades ou você tem alguma “ambição de mídia” para ele? Por que os blogs brasileiros não são tão importantes ainda, como são, por exemplo, nos EUA? Ou são? Como você avalia?

Não vejo relação entre música rock e novos autores. Claro que há um punhado de autores identificado com isso, mas hoje em dia há um punhado de autores identificado com cada coisa que existe. Toco em uma banda, mas fazemos um ou dois shows por ano. É uma atividade que me dá muito prazer, mas ela não se confunde com minha carreira de escritor, que é a minha prioridade. Quanto ao meu blog, não tenho ambição nenhuma com ele. Ter um blog é algo básico para mim, pois sempre usei a web para tudo. Uso o blog para divulgar meus projetos, manter contato com amigos e dividir com os leitores pequenos fragmentos da minha vida pessoal. Mas ninguém seria capaz de me conhecer através do meu blog. O que publico ali é calculado, é uma imagem de mim mesmo. Não saio escrevendo sobre cada coisa que acontece na minha vida, muito pelo contrário. Talvez, ao expor uma pequena fração da minha vida, eu tenha a sensação de estar controlando o que os outros sabem ou não a respeito de mim. Talvez seja minha forma um pouco paradoxal de lidar com a superexposição da intimidade que marca a época atual. Mostro a mão para poder esconder o resto.

10. Por último, suas atuações, digamos, “públicas”. Como foi ser Coordenador do Livro e da Leitura, em 2005, na prefeitura de Porto Alegre? Acha que não tem vocação para a chamada “coisa pública”? Se pudesse dar um conselho ao MinC, sobre o futuro da literatura no Brasil, qual daria? E do MLU (Movimento Literatura Urgente), o que acha? E da Flip? Terminando: se você – olhando de fora – pudesse escolher entre o Galera-escritor e o Galera-agitador cultural, com qual ficaria?

Minha rápida passagem pela CLL foi uma experiência fulminante que me ensinou exatamente isso: não tenho vocação para a coisa pública. Nem para mandar em pessoas. Nem para ouvir reinvidicações dos outros. Meu negócio é meu computador, meus livrinhos, meu trabalho. Eu tinha um livro para escrever, precisava do tempo. Mas foi legal. Entendi como muita coisa funciona. Conheci pessoas que se esforçam muito para realizar coisas positivas para a coletividade, em circunstâncias totalmente adversas de trabalho e orçamento. E conheci também os entraves, a má-vontade, a falta de preparo e o apetite da burocracia. O conselho que eu daria ao MinC consiste numa única palavra: bibliotecas. Na Biblioteca Pública de Porto Alegre, não se comprava um livro novo há muitos anos. Nos meus quatro meses lá, também não consegui comprar. Não há dinheiro. Era preciso antes dedetizar a biblioteca, para eliminar as baratas. Enfim, é uma situação bem grave, que requer pessoas talentosas e aptas que possam lidar com elas, o que não era o meu caso, portanto me retirei. Não assinei o manifesto do MLU porque não acho que escritores precisem de apoio estatal. Quanto à FLIP, bem, é uma festa literária. Para mim, que fui convidado em 2004, foi ótimo. Me trataram como um autor consagrado, o que eu não era. Conheci meu atual editor lá, então de certa forma vinculo a FLIP à oportunidade que tive de publicar pela Companhia das Letras. Tomara que ela prospere, que mantenha o foco mais nos livros, autores e leitores.

Nota do Editor
Texto igualmente publicado na edição de junho do Rascunho.

Para ir além





Julio Daio Borges
São Paulo, 12/6/2006

 

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