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Quarta-feira, 8/1/2003
Digestivo nº 115

Julio Daio Borges

>>> TANTO RISO, TANTA ALEGRIA... Depois das retrospectivas e dos especiais de fim de ano, todos ficam se perguntando se vai haver outro assunto na imprensa que não seja a posse de Lula. Para os que gostam de fatos históricos, uma coisa é certa: nunca houve tema que desse tanta capa de revista; e a unanimidade, pelo lado dos jornalistas, nunca foi tão grande. Levantar a voz contra o novo Governo agora é como falar mal de futebol em época de Copa do Mundo. Mas vamos dar a César o que é de César. As escolhas para o Ministério foram sóbrias e o PT tem feito um esforço, louvável, para efetivamente convocar todos os setores da sociedade. O tal Pacto saiu do discurso e foi para a realidade. Antônio Palocci [alguém explique por que é "ci" e não "tchi"], responsável pelo processo de transição, e atual Ministro da Fazenda, tem sido o mais elogiado entre os nomeados. Passou por sabatina recente, no programa Roda Vida, e não se deixou encurralar pelos principais jornalistas de economia do Brasil. Já Gilberto Gil, embora ídolo popular da música, tem sido o mais combatido da lista: uma hora é por causa do palavreado; outra hora, por causa de seus adereços - enfim, se não tomar cuidado, vai acabar como o bobo da corte do novo Governo. Ciro Gomes, o "enfant terrible" da campanha presidencial, teve de abaixar a crista e tudo indica que aja no estilo low-profile de Itamar Franco (ainda que tenha feito um escarcéu na Fazenda, em 1993). Benedita da Silva, depois de uma experiência desastrada no governo do Rio, anda igualmente mais contida - embora acene para a ira dos Garotinho, hoje mandantes de um estado possivelmente rebelde da Federação. Henrique Meirelles, o ex-todo-poderoso do Bank Boston, seguindo a linha dos convocados, assumiu o Banco Central tendo ido antes apertar a mão da estrela oposicionista do PT, Heloísa Helena. Enfim, é tanta cordialidade e diplomacia, na classe política, que o brasileiro até estranha. Outro recorde: o governo Lula promete ser um dos mais documentados da História. Fora manchetes e bancas de jornal abarrotadas, preparam-se filmes, mostras, livros, exposições e reportagens. Com uma esquerda vitoriosa, e soberana na mídia, não se podia esperar outra coisa. Bom. Fica-se aguardando a meia-noite, então; quando o efeito cinderela passará e terminaremos descobrindo qual o resultado prático de todo esse carnaval escarlate.
>>> Um dia para a história
 
>>> MATER DOLOROSA Se o lobby baiano não fosse tão forte, e se o mineiro não fosse o típico come-quieto, poderíamos ter sabido mais sobre a música de Minas Gerais. É o que se atesta pela audição de "Pietà", novo álbum de Milton Nascimento. Afinal, tivemos uma geração inteira, todo um Clube da Esquina, que poderia ter se estabelecido - tal qual a Máfia do Dendê. Ou até melhor. Enfim. Em "Pietà", ei-los novamente, em sua melhor forma, tocando e compondo com Milton. Lô Borges empresta o som de seu violão, e também seu talento de melodista, a "Quem sabe isso quer dizer amor", que conta ainda com a letra de outro Borges, o Márcio, e com o solo de Samuel Rosa. Márcio também assina "Voa bicho" ao lado de ainda outro Borges, o terceiro, Telo. Deste último, são igualmente as músicas "Tristesse" e "Meninos de Araçuaí" (em referência ao coro que participa do álbum). E Fernando Brant, logicamente, destila sua lírica já na faixa de abertura, "A feminina voz do cantor", bem como em "Beleza e canção". Nem Beto Guedes escapa; assombra "Pietà" no cantar nasalado de Simone Guimarães. Contudo, o revival à mineira, embora aconteça, não é o mote do disco. O mote são as mulheres. As relações de Milton com o cantar feminino, a homenagem que presta à sua mãe Lília e a evocação do espírito de Elis Regina (sua musa para sempre). Foi o bardo de Minas quem convenceu Maria Rita Mariano, a herdeira do legado da Pimentinha, a cantar. Ela estréia na já mencionada "Tristesse", e o timbre, para dizer o mínimo, é assustadoramente semelhante. Completando a trinca de intérpretes com quem Milton divide o fôlego, está Marina Machado, em "Casa aberta" e "Imagem e semelhança". Tão capaz quanto Simone e Maria Rita. (Para uma comparação mais precisa, sugere-se "Vozes do vento", a última do disco.) Tanto quanto em "Tambores de Minas", a impressão que se tem é de que Milton Nascimento está cansado de cantar. Prefere dirigir e generosamente ceder espaço a novos nomes. Dos grandes da MPB, é o mais aberto nesse sentido. Seus músicos, além de tocar, têm a chance de registrar suas composições no álbum. As presenças de Eumir Deodato, Pat Metheny e Herbie Hancock em "Pietà" dão a medida exata da importância do compositor no exterior. Já no Brasil, o monopólio da Bahia, e um certo dandismo de Santo Amaro da Purificação, atrapalhou um pouco.
>>> Pietà - Milton Nascimento - Warner Music
 
>>> O JUSTO VALOR Quem acompanha o choro e a música instrumental, no Brasil, certamente já ouviu falar de Henrique Cazes. É um dos mais talentosos cavaquinistas de sua geração. Além de maestro ocasional e também escritor. Assina uma das melhores histórias do chorinho de que se tem notícia: "Choro: do Quintal ao Municipal". Nos bastidores, acumula ainda a função de contador e colecionador de casos sobre o meio em que atua. Tem um vasto repertório de anedotas, que apresenta em shows (vide a série "Sem tostão", ao lado de Cristina Buarque) – e finalmente resolveu agrupá-las em livro. O volume intitula-se "Suíte gargalhadas", saiu pela José Olympio e reúne dezenas de episódios engraçados e/ou curiosos. Embora "ao vivo" seja indubitavelmente muito hábil e convincente como piadista, por escrito Henrique Cazes perde grande parte da graça. Infelizmente. Fora que há uma certa inclinação, fácil, ao palavrão e à escatologia, que depõem contra o seu profissionalismo e o seu brilho, como instrumentista. É como se, de repente, não quiséssemos saber que Miúcha rogou aos céus por uma levantada no seu derrière; ou então que Aracy de Almeida se insinuou, explicitamente, para o maestro Radamés Gnattali. Há, enfim, cenas que não mereciam cair no domínio público. Pelo bem da classe artística. (Pudor? Pode até ser.) Claro, todo mundo sabe da boemia e da permissividade nesses meios – mas será que ambas merecem ser reveladas, assim, em detalhes? Lógico: apesar do tom predominantemente escrachado, sobram momentos verdadeiramente engraçados, para enriquecer o folclore. Como aquele em que Tom Jobim se recusou a ir a Cuba, alegando que, para ele, ilha só mesmo Manhattan; ou então quando Cazes resume a situação do músico à pergunta que ele faz sobre o cachê: "Quanto é o serviço?" (bonança); "Quanto é a paga?" (meio-termo); "Tem lanche?" (vacas magras). São duzentas páginas com orelha de Marcelo Madureira e João Máximo (o que talvez explique a dubiedade do resultado, entre rasteiro e elevado). Para ser liquidado em duas horas, "Suíte gargalhadas" acaba restrito à classe dos músicos (provavelmente mais afeita às suas intenções e comicidade).
>>> "Suíte gargalhadas" - Henrique Cazes - José Olympio - 203 págs.
 
>>> VER PARA CRER Ainda está nas bancas. E ainda vale a pena ler. Mesmo sendo edição especial de dezembro de 2002. Desde a sua venda, e conseqüente reformulação, que a Cult vem atirando para todos os lados. No bom e no mal sentido. No bom porque desistiu daquele ponto de vista estóico, focado só em literatura. (Num certo senso burocrático e uspiano.) E no mal porque não conseguiu se curar da crise de identidade. A mesma que grassa na imprensa toda. (A Cult, pelo menos, assume.) Enfim, foi muito corajosa ao falar de religião, em sua edição 64. Como aponta o ensaio de Luiz Felipe Pondé, a discussão caiu em descrédito. Os religiosos colocando a fé antes da razão; e os céticos colocando a ciência como medida para todas as coisas. Pondé retrocede até o século XIX, para mostrar como o homem caiu num abismo; e como a criação perde o seu sentido, no sacrifício perpétuo de vidas que não levam a nada. Não é novidade, querer retomar a escolástica, e mesmo o medievalismo clássico. Descartes que, digamos, "derrubou" todo esse arcabouço tem sido atacado até na seara da neurociência (vide Antonio Damasio). Paga ainda hoje pelo advento da "dúvida sistemática" (estandarte de dez entre dez pensadores que não acreditam em nada). Russell também entra na contabilidade de Pondé, negativamente, por ter feito pouco da filosofia católica (em sua "História da Filosofia Ocidental"). De fato, rejeitar o opus de São Tomás de Aquino, a quem se deve a canonização de Aristóteles, não é atitude recomendável. Claro, tem gente aproveitando essa onda, a era de aquário, para reavivar antigos preconceitos de classe. A sociedade de castas, por exemplo: em que os escolhidos são, por definição, melhores que os demais. A perseguição a homossexuais (porque não "procriam" e são moralmente "reprováveis") e a retomada do racismo (pois quem manda é o velho macho, adulto, branco). E os piores entusiastas desse "revival" são os que têm objetivos políticos e ideológicos. Uma retomada da direita mais quadrada, dos regimes de exceção e do militarismo (believe it or not). Óbvio que não têm nada a ver com Jesus Cristo; muito menos com filosofia e religião. Portanto, é importante ler a Cult, mas ter em mente também os (neo)convertidos de ocasião. Há sempre muitas outras intenções por debaixo do pano.
>>> Revista Cult
 
>>> DEUS ESTÁ NOS DETALHES? Se o primeiro “Senhor dos Anéis” foi o da ação, este segundo é o da capitulação. Não são poucas as dúvidas existenciais que afligem as personagens: Frodo, dominado pelo anel, volta-se contra seu fiel escudeiro Sam; Aragorn, dividido entre dois amores: a elfa Arwen e a guerreira Éowyn, vai ter de – no terceiro episódio – optar; e até Saruman, o poderosíssimo mago, derrotado em múltiplas frentes de batalha (Rohan e Gondor, para citar duas), simplesmente perde a cabeça e a calma. São, como se pode observar, muitos nomes, muitas localidades e muitos fatos, exigindo do espectador um acompanhamento minucioso e uma memória de elefante para resgatar todos os detalhes. Se o terceiro “Senhor dos Anéis” será a conclusão da saga e o primeiro foi a introdução dela, então este segundo (“As Duas Torres”) fica justamente ensanduichado entre as duas metades, tendo de acelerar o tempo e preparar tudo para o desfecho final. A visão “histórica” e “panorâmica” que conquista o público n’“A Sociedade do Anel”, de repente, cede lugar a pequenos atos e palavras, diluindo o ritmo grandioso inicial. Gollum, por exemplo, a criatura que detera o anel em sua caverna durante eras, volta agora em primeiro plano – mas, além de guia de Frodo e Sam, nas montanhas de Emyn Muil, só consegue cansar a beleza da platéia com a sua voz esganiçada, o seu movimento gosmento e a sua dupla personalidade. Parece que foi colocado ali para justificar o investimento em efeitos especiais (tem cara de computação gráfica). Liv Tyler (a tal elfa, Arwen) também: como não decide nada neste episódio, é usada como apelo (sexual?) para tentar o herói e os fãs adolescentes de Tolkien. Os remendos igualmente incomodam. Talvez no livro soem mais plausíveis, mas na tela não enganam. Gandalf, o outro mago, que havia caído no precipício, volta revigorado – depois de uma luta pouco convincente e abismal. E para ficarmos num último fator de dispersão (esse simpático), Gimli, o baixinho ruivo e barbudo, anda mais cheio das graças e dominando a cena com suas piadas. Fora essas distrações todas, na parte séria, a raça dos homens é ameaçada, os elfos entram na parada, Saruman sofre um revés e Frodo está às portas de Mondor. Assim acaba esta segunda parte. Será que vamos agüentar esperar (doze meses mais)?
>>> The Lord of the Rings
 
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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