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Terça-feira, 28/10/2003
Digestivo nº 146

Julio Daio Borges

>>> DESCONSTRUÇÃO Chico Buarque. O peso de um nome. O que se pode esperar de um livro escrito por Chico Buarque de Hollanda? Até que ponto é possível desvincular a imagem do compositor de MPB de sua literatura? Se Chico Buarque quisesse ser julgado imparcialmente pelos romances que agora comete, deveria, primeiro, ter prescindido de sua assinatura. Bem que ele tenta neste “Budapeste”. Mas não adianta inventar a história de um ghost-writer que responde por dois nomes (José Costa, no Rio, e Zsoze Kósta, na Hungria), se o cancioneiro do Julinho da Adelaide (pseudônimo do autor de “A banda”) ainda ofusca. Como seu personagem, Chico Buarque vive uma crise de identidade: não quer ser mais uma eminência parda no cenário da música brasileira; não quer ser mais o marido da Marieta Severo – quer se reinventar. Andou declarando que “música popular” é coisa para jovem e que reservou sua maturidade para a literatura. O amigo Eric Nepomuceno conta que ele se tranca num apartamento durante horas, e aparece depois barbado e encafifado com um termo. Correm lendas de que passou não sei quantos anos escrevendo esse terceiro “rebento” (contando apenas a fase que teve início com “Estorvo” [1991]; “Benjamim” [1995] depois). Mas vamos ao livro. “Budapeste”, dizem, é o mais bem realizado dos três. E, de fato, não é ilegível; chega a ser divertido e extremamente bem acabado, a partir do capítulo em que Vanda (a mulher do protagonista) se deixa seduzir por um alemão oportunista. Já a procura de José Costa por seu “duplo” é cansativa e confusa. Sua queda pelo húngaro (idioma de Kriska, sua amante) é injustificada e soa artificial, já que o seu artífice (Chico Buarque) nunca esteve por aquelas bandas... Há um ranço de Rubem Fonseca (inevitável), e chegamos a pensar que “Budapeste” foi escrito a quatro mãos. Mas será que o parceiro de Tom Jobim suportaria tal intervenção? Por causa de uma suposta “glória” literária? Parece pouco provável. Enfim, o livro é bom. Já o resultado, dúbio: Chico Buarque não tem mais tempo hábil para se tornar um “grande escritor”; em paralelo, não se livra da carga do letrista de “Bye bye, Brasil” (1980). Qual a solução para o enigma? A seguir cenas do próximo livro; ou disco...
>>> Budapeste - Chico Buarque - 176 págs. - Companhia das Letras
 
>>> AINDA SOMOS OS MESMOS? Maria Rita tem tripla filiação. É filha de Elis Regina e Cesar Camargo Mariano, e é filha de uma época em que, para aparecer, tem de ver seu nome incessantemente bombardeado pela mídia. Deve ser cansativo para quem tem mais que um sobrenome (para ostentar), e mais que uma “personalidade feminina” (para exibir: posando na “Playboy”, namorando “Big Brothers”, infestando a seção “Gente” das revistas). Felizmente, para uma audiência já enfadada depois de tantos embustes, Maria Rita sabe cantar; e legou, ao menos, um álbum digno de nota, nestes tempos de cantoras abundantes e inexpressivas. É lógico que ela não canta “igual à mãe”. (Na idade dela, nem a própria mãe cantava.) Tirando a assombrosa semelhança de timbres de voz (para quem duvidava da tal “herança genética”), as comparações são, em geral, muito perigosas. Arriscando algumas (nem todas novas): Maria Rita canta “para fora” e encerra, finalmente, o primado da “rainha dos sussurros”, Marisa Monte; Maria Rita tem suingue e, além de acertar as “entradas” (coisa que quase ninguém acerta), conduz o “instrumental” sem se deixar conduzir por ele; e Maria Rita é tão segura de sua interpretação que apresenta novos compositores (faz parte do talento reconhecer o talento alheio). Ou seja: ela tem os principais atributos para construir uma carreira consistente, saindo vitoriosa da sombra de Elis Regina. Acontece que, nesse ínterim, pode ser devorada pelo “mass media” (como hoje ocorre com 99,99% dos que atingem o “mainstream”). Para a sua sorte, porém, desde o retumbante lançamento, Maria Rita não se revelou tão popular assim (vale dizer que, em mais de 30 anos, o conceito de “popular” mudou muito; MPB é hoje coisa para “as elites”...). Enfim, num inferno cheio de boas intenções, há gente querendo reconhecê-la como uma espécie de “redentora”. Não é. Infelizmente, ninguém mais vai separar, para nós, o joio do trigo. Só nós mesmos.
>>> Maria Rita - Warner Music
 
>>> MINTO, LOGO EXISTO Fellini é mesmo um grande mentiroso, conforme o documentário em cartaz por estas plagas. Aliás, um dos melhores momentos é quando Donald Sutherland (para os mais jovens, o pai de Kiefer Sutherland), aparece para desmascará-lo, dizendo que destratava os atores, pondo-se histérico no set de filmagem, passando por cima do roteiro e tirando cenas literalmente da cartola. É sabido que os gênios não são as pessoas mais afáveis e democráticas do mundo (se o fossem, não imporiam sua vontade – seguiriam a maioria e sucumbiriam, como quase todo mundo, à mediocridade). O diretor do documentário, Damian Pettigrew, inclusive, percebeu os estratagemas de Fellini para mentir e mentir, ao longo de décadas, e enfiando-lhe a câmera na cara, nos seus últimos anos, tentou pegá-lo “no contrapé”. Conseguiu? O resultado é discutível. Existem sobre Fellini documentários melhores. Como “Entrevista com Fellini” (2000), que esteve por aqui durante a 24ª Mostra (na Sala UOL), e que até Ignácio de Loyola Brandão prestigiou. Afinal, qual o segredo de um bom documentário? Não ser totalmente veraz... e mentir um pouco. A injunção jornalística de Damian Pettigrew torna “Fellini – sono un gran bugiardo” (2002) excessivamente investigativo, o que não combina com seu protagonista e até cansa um pouco. São obviamente destaques os trechos do mestre italiano dirigindo, com seu inglês limitadíssimo, comandando como num balé os movimentos da câmera. Nega veementemente o “improviso”, embora não faltem testemunhos sobre o seu estilo um pouco caótico de conduzir as coisas. O produtor conta que, para trabalhar com ele, era necessário estar preparado, porque Fellini exigia somas vultuosas e mudava constantemente de idéia (desperdiçando montanhas de dinheiro) sem pestanejar. Algo que é confirmado por Roberto Benigni, que reforça: diante de “il maestro” ninguém questionava nada, pois ele tinha o direito de ser quem era, e ponto. O comportamento absolutista de Fellini é, desta vez, o grande destaque – e não, surpreendentemente, o próprio.
>>> As mentiras verdadeiras de Federico Fellini
 
>>> ISN’T IT A BLISS, DON’T YOU APPROVE Esta é para quem ainda acha que São Paulo não tem uma das melhores temporadas de concertos do mundo. No início de outubro, via Mozarteum Brasileiro, estiveram nesta capital o regente Eiji Oue e o clarinetista Paul Meyer. Quem são esses dois? Eiji Oue foi nada mais nada menos que “protégé” de Leonard Bernstein, um dos maiores maestros do século XX, e Paul Meyer, amigo de um certo Benny Goodman, mestre do clarinete que levou o jazz, em 1938, para as salas de concerto (começou pelo Carnegie Hall). E para quem considera os preços da Sala São Paulo proibitivos, vale lembrar que eles, mais a Orquestra Filarmônica da Rádio de Hannover (NDR), apresentaram-se ainda – gratuitamente – no Parque do Ibirapuera. Foi um show. São Paulo poucas vezes se divertiu tanto com a condução espirituosa de Eiji Oue, que rebolava escandalosamente durante o bis, ao comandar a execução de “Rondò Alla Turca”, de Mozart; e que, cansado de tantas idas e vindas (foram três as “canjas”), apontou para o relógio, juntou as duas mãos e pôs a cabeça de lado – indicando, delicadamente, que já era tarde e que sentia sono. Foi incansável, não apenas ao atender aos aplausos do público, mas ao executar a monumental “Sinfonia fantástica” (op.14), de Berlioz, em cinco movimentos. Isso depois de quase flutuar, ao lado de Paul Meyer, durante o “adagio” do “Concerto para clarinete em lá maior” (K. 622), também de Mozart. Encerrado esse número, os dois não puderam acreditar: foram ovacionados como “rock stars” – e não por qualquer platéia, mas pelos assinantes do Mozarteum Brasileiro. Antes do intervalo, Meyer não se furtou a conceder um “choro”, e chacoalhou mais uma vez suas melenas ao abordar “Send In the Clowns”, de Stephen Sondheum. Como diziam os Andrades no começo do século (acerca do Brasil), os paulistanos, além de acreditar que a temporada de música clássica “existe”, precisam também “vivenciá-la”. Então ela florescerá; ainda mais.
>>> Mozarteum Brasileiro
 
>>> MAU HUMOR

“A juventude é uma conquista da maturidade.” (Jean Cocteau)

* do livro Mau humor: uma antologia definitiva de frases venenosas, com tradução e organização de Ruy Castro (autorizado)
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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