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Quarta-feira, 6/2/2002
Digestivo nº 67

Julio Daio Borges

>>> CINCO ANOS ESTA NOITE Em homenagem ao qüinqüênio da morte de Paulo Francis, ocorrida em fevereiro de 1997, o GNT reprisou o especial “Eu, Francis”, produzido em setembro de 1998. A partir das intervenções do jornalista no programa Manhattan Connection, o próprio conta passagens importantes de sua vida, matando por instantes as saudades dos que sentem sua falta até hoje. A parte mais reveladora do programa, porém, é o retrato que Sônia Nolasco (sua companheira por 22 anos) traça do homenageado, tomando por base hábitos, costumes e preferências pessoais. Por trás dos escritos e da personagem que Paulo Francis forjava nos jornais, nas revistas e na televisão, surge, enfim, o homem comum (como no título de Anthony Burgess). Alguém que acordava para ler os jornais (no caso, o New York Times), tomava o seu café da manhã (no caso, torradas com salada de frutas), seguia para o trabalho (no caso, a redação da TV Globo), almoçava com colegas (no caso, Elio Gaspari), voltava para casa no fim da tarde (quando encontrava a esposa, conversava sobre o dia e lia em sua companhia), tinha uma atividade noturna (no caso, escrever livros ou assistir LDs de ópera) e se deitava. Sem mistérios, sem segredos. Nada de extraordinário no seu acervo, nada de mirabolante nas suas relações, nada de surpreendente na sua casa. Por quê, então, o admirávamos tanto? Transcorrido o lustro, em que a angústia da influência (de Harold Bloom) se dissipa, encontramo-nos diante de um caso em que o todo não corresponde à soma das partes. É possível pensar na sua coluna como ritual iniciático, que todo aspirante a jornalista encarava para ampliar os limites da consciência e da percepção. Ou, talvez, na sua verve, como um ato de coragem (a mesma que faltava a todos nós). Ou, ainda, na beleza de estilo, rico e inimitável, tal qual uma mistura de... Paulo Francis, com... Franz Paul Trannin Heilborn. Quem sabe, mais interessante do que entendê-lo nesta hora, seja evocá-lo, como marca indelével, dos bons tempos de nossa formação. E só.
>>> Um guia para ter cultura
 
>>> GIGANTE PELA PRÓPRIA NATUREZA A Kuarup relançou, em 2001, uma das mais importantes obras escritas para violão no Brasil: os Estudos, os Prelúdios, os Choros e a Suíte Popular de Heitor Villa-Lobos, na interpretação dos irmãos Sérgio e Odair Assad. Ou seja, tudo o que o compositor de “O Trenzinho do Caipira” fez para violonistas solo, num dos registros mais célebres de que se tem notícia. Inicialmente um projeto patrocinado pela Coca-Cola, agora acessível ao grande público, permite que se conheça as gravações feitas em 1978 – as mesmas que notabilizaram o Duo Assad no mundo e que antes não haviam chegado ao formato CD. Reza a lenda que Heitor Villa-Lobos se formou, no violão, sob a influência de seresteiros e chorões como Ernesto de Nazareth e Sátiro Bilhar (tendo este último, inclusive, inspirado a Fuga da primeira das “Bachianas Brasileiras”). O maestro, no entanto, sentia enorme dificuldade em admiti-lo em sociedade, quando jovem, pois o violão era considerado “vulgar”. Nesse ambiente, o violoncelo acabou consagrado como o instrumento de sua predileção, embora o encontro com Andrés Segóvia, na Paris de 1924, o tenha marcado para sempre (a ponto de dedicar-lhe, posteriormente, os 12 Estudos e o Concerto para Violão e Pequena Orquestra). Coincidentemente, décadas depois, Sérgio e Odair Assad estudariam sete anos com Monina Tavora, ex-pupila do mesmíssimo Segóvia. Eis porque a sua versão da “Obra Completa” tende a ser, de antemão, extremamente fiel às intenções do compositor. O disco se inicia pelos 5 Prelúdios, numa seqüência virtuosística de 23 faixas, que se encerra nos Choros nš 1. Os irmãos Assad se alternam a cada peça. Sugere-se, aos não-iniciados, que principiem pela Suíte Popular Brasileira, em cinco movimentos, plena em mazurcas, valsas e, logicamente, chorinhos. Para além da questão de gosto, paira o valor histórico. Os brasileiros deveriam conhecer esses registros tanto quanto (ou mais que) o próprio Hino Nacional.
>>> Villa-Lobos - A Obra Completa para Violão Solo
 
>>> GÊNERO, NÚMERO E GRAU Há tempos não se via uma peça tão badalada quanto a adaptação do livro de José Saramago, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, em cartaz no Teatro do Sesc Vila Mariana. Só pela acolhida de crítica e de público, o espetáculo já teria méritos inquestionáveis. Mas ele vai além: tem a direção do irrepreensível José Possi Neto; tem a atuação sólida de Walderez de Barros; e tem a revelação de um nome que trabalha pelo desenvolvimento da arte de encenar, Celso Frateschi, no papel de Diabo. A transposição do texto original foi bastante feliz, no sentido de que procurou manter o essencial, sem sacrificar a escrita (que privilegia o uso da segunda pessoa), e sem simplificar a discussão que, em alguns momentos, envolve conceitos filosóficos ou, no mínimo, psicológicos. As duas horas de duração exigem concentração e silêncio do espectador, e é gratificante constatar que, apesar dessa disciplina (necessária), as pessoas voltam a lotar a sala, no fim de semana seguinte. Ou seja: ao contrário do que pregam os apocalípticos dos meios de comunicação, ainda existem interessados em temas inteligentes e aprofundados (que provocam estranhamento e não apenas “entretêm” a audiência). A história é aquela do Jesus Nazareno, que todos já conhecem. Com algumas modificações. Modificações radicais, que custaram muito caro ao autor. A idéia é humanizar as figuras bíblicas, de modo a incutir-lhes aspectos tão comuns à civilização, mas tão propositalmente ignorados em mitos sagrados. Assim, Jesus cede, por exemplo, aos prazeres da carne; Deus revela sua ânsia de poder; e o Diabo, num lance de esperteza (muito à brasileira, aliás), sai-se melhor que os demais. Antes de se pensar em “sacrilégio”, no entanto, é preciso lembrar que – a rigor – não se fala de religião, e sim de inconsciente coletivo (no máximo). Que a temporada continue vitoriosa para todos os envolvidos na realização.
>>> O Evangelho Segundo Jesus Cristo
 
>>> O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE) Quanta diferença. Enquanto a maioria dos donos de restaurante vê o seu negócio como uma mina de ganhos fáceis e imediatos, Frédéric Serre e Luci Haddad entregam-se de corpo e alma ao “Crêpe de France” – que se converte, portanto, em uma iniciativa humanista, mais do que num projeto meramente gastronômico. Tudo começou quando a artista plástica e designer, com larga experiência em turismo na Maison de la France, encontrou o chef nascido em Valence, certificado pela Académie de Grenoble em Cuisine Classique. Corria o ano de 1997, e a decisão comum foi de montar uma crêperie no Brasil. Depois de uma viagem de pesquisa e peregrinação pela França, a dupla retorna a São Paulo, instalando-se na Vila Uberabinha, num local calmo e sossegado, evocando a tranqüilidade do interior da Bretanha. Não por acaso, acontece da rua se chamar Marcos Lopes, a mesma que hoje liga a Afonso Bráz à Hélio Pelegrino, o mesmo que ontem foi o primeiro restaurateur da metrópole. Ninguém desconfiava que dentro daquela casinha discreta, que se estende para dentro do quarteirão, Frédéric e Luci fariam um verdadeiro trabalho de formação – desde os garçons até a clientela, de modo que todos hoje conhecem a História e as histórias por trás das Galettes de Sarrasin, das Crêpes de Froment e do Cidre Bretão. As primeiras são o que nós, brasileiros, vulgarmente chamamos de “crepe salgado”; em seguida, obviamente, os “crepes doces”; e, por fim, a bebida que é tradicional e que deve obrigatoriamente acompanhar a refeição, como no costume bretão: o vinho espumante, feito de suco de maçã, servido numa canequinha simpática e extremamente convidativa. Acontece, porém, que as nossas noções (adquiridas a partir do “crepe brasileiro”, que não passa de uma panqueca) são insuficientes para descrever toda a riqueza de ingredientes e recheios que compõe os pratos do “Crêpe de France”. A experiência de se estar lá, entre os “embaixadores da Bretanha” (assim reconhecidos pela própria), é inesquecível e não deve ser postergada. É como um sonho bom, que se torna realidade. Vida longa ao “Crêpe de France”. Vive la Bretagne.
>>> Crêpe de France - Rua Marcos Lopes, 271 – Tel.: 3044-0679
 
>>> SO MUCH THAT WAS GOOD BUT IS GONE Como Era Verde Meu Vale. O que sugere um título desses? Decerto que não um filme em preto-e-branco. Mas é justamente o caso: uma produção sem cores que, no entanto, irradia um colorido esfuziante. De sentimentos, nobres sentimentos. Família. União. Autoridade. Resignação. Palavras hoje acompanhadas de uma dúzia de preconceitos cada. É démodé e quadrado, por exemplo, defender uma “família” bem-constituída (com pai e mãe). É simplesmente impraticável, em plena era do individualismo e do consumo, alcançar algum tipo de “união”. É retrô, com laivos de conservadorismo (reaça), respeitar qualquer que seja a “autoridade”. E é sinônimo de tolice e comodismo, entender que a melhor saída, muitas vezes, vem através da “resignação”. Por isso, um DVD como How Green Way My Valley tem hoje tanta importância. Para mostrar que esses valores são válidos e não “atrasados” ou “caretas”, como se costuma pensar. Crescemos com a ilusão, ou a desilusão, de que o ser humano é auto-suficiente em seus sentimentos; de que sozinho e investido de poder (qual seja) consegue tudo; de que não deve nada a ninguém, principalmente respeito àqueles que o precederam; e de que a vida é puro livre-arbítrio, tendo o destino (ou o que for) papel alegórico em toda a história. Acontece que essas crenças (sim, crenças) não nos bastam e quando nos deparamos com uma sociedade regida por princípios contrários aos nossos – com problemas também, mas inspirando simpatia e aspirações mais elevadas – é tempo de se pensar se o nosso modelo não está... ultrapassado. Isso mesmo: ultrapassado. Bem, se o discurso “pseudomoralizante” incomoda, o argumento estético deve convencer os mais refratários: assista-se Como Era Verde Meu Vale pela beleza. Só por ela, ele já vale. Ah, se vale.
>>> How Green Was My Valley
 
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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