BLOG
Terça-feira,
28/2/2017
Blog
Redação
|
|
|
|
|
Rua da passagem
Com tantos enterros passando em frente de sua casa, Ferreira já não estranhava mais a morte.
A rua, afunilando na subida íngreme, terminava no portão de entrada do cemitério. Percebia-se o alívio dos que acompanhavam os mortos, tão logo os caixões eram apoiados nas beiras dos túmulos.
Menino ainda, o pai comprou a casa. No início a mãe dizia que não ia aguentar, os enterros passando debaixo da janela o tempo todo. Fez o marido jurar que mudariam pra outra casa longe dali. Acabaram ficando a vida inteira.
Ferreira cresceu, estudou, trabalhou, casou, os filhos nasceram, os mortos não paravam de passar.
Um dia, houve tantos, um povaréu sem parar, as pessoas se embolando, gente seguindo caixão errado. Se o tempo não ajudava, se um parente do morto de cidade distante demorava a chegar, os sepultamentos iam até o anoitecer, pouca gente acompanhava, povo medroso igual não tinha.
Pelo tamanho do cortejos e dos tipos de caixões, dava pra perceber quem ia dentro. Os dos pobres, poucos seguiam, um bolinho de gente de cabeça baixa, uma vez ou outra um choro cortando a reza. Nos dos ricos e importantes, tanta gente, os que ficavam pra trás iam conversando sobre negócios, sobre acontecimentos e até riam. Havia também os que levavam junto alguns de seus pertences: uma bandeira de um clube de futebol, um vestido de noiva, e até certa vez um pandeiro, quebrando o silêncio com os solavancos do caixão.
No dia de finados, a rua era uma festa. As barracas de flores, de velas, de bebidas, guloseimas e salgados ocupavam os passeios.
A rua também tinha suas histórias engraçadas como as dos bêbados perdidos de noite entre os túmulos amedrontando a vizinhança. Estranhas também, como a da viuvinha, casada de pouco, que todos os sábados levava flores pro marido morto na explosão da pedreira e que um dia não mais foi vista fazendo o caminho de volta.
Os moradores davam conta da vida de todos os que eram levados pro cemitério. Se os que iam ser enterrados passassem sem deixar uma história, pequena que fosse, ficava um grande vazio. Nada sabendo de quem ia no caixão, entravam para suas casas acabrunhados.
Foram anos e anos e as mortes passando. Morte de todos os tipos: por acidentes, paixões, rixas de família, homens lavando honra, suicídios, por amor e desamor. E mesmo que irresignáveis, as incontáveis naturais. Vez por outra os caixões lacrados — temor de doenças contagiosas, os lenços nos nariz. E os das crianças, alguns de tão pequenos levados junto ao peito pelos pais, embalando-as pela última vez.
As mulheres eram as que mais visitavam os túmulos. Subiam com as mãos segurando flores, terços, velas, o olhar enterrado no chão. Na volta os rostos erguidos, desencurvadas, confortadas.
Com o passar dos anos, a mulher do Ferreira também acabou se acostumando, até sentindo falta da rua quando viajava ou tinha que passar uns dias com as filhas. Tão logo voltava, corria pra casa dos vizinhos em busca de novidades.
O Ferreira não saía pra lugar nenhum. Uma vez ou outra ia na casa do Nicanor para uma partida de dama. No mais ficava o tempo todo na varanda, varrendo a rua com o olhar pra cima e pra baixo. Nunca pôs os pés no cemitério. Iria lá só num único dia, dizia. E quando esse dia chegasse, que chegasse, completava.
Foi então que tudo acabou. De uma hora pra outra, os enterros pararam de passar, as pessoas já não mais eram vistas, não mais se encontravam nas portas das casas.
A tristeza tomou conta dos passeios, das varandas, das janelas. Ninguém sabia explicar o que estava acontecendo.
A ordem tinha sido dada. Os cortejos não mais iam poder transitar pelas ruas da cidade. Para facilitar o acesso dos veículos, uma entrada tinha sido construída do outro lado do cemitério. Chorar os mortos daquele dia em diante só no velório.
As histórias foram rareando, a rua nunca mais foi a mesma. O Ferreira foi o primeiro a morrer.
[Comente este Post]
Postado por
Blog de Anchieta Rocha
28/2/2017 às 23h19
|
|
Gente que corre
Tem gente que gosta de correr na companhia de algum amigo ou até mesmo em grupos de corrida. Tem gente que gosta de variar os trajetos. Tem gente que gosta de seguir planilhas de treinos. Tem gente que gosta de competir, correr no limite (ou até mesmo acima dos limites). Tem gente que tem sangue nos olhos quando calça um par de tênis...
Mas tem gente, assim como eu, que prefere correr sozinho; que gosta de participar de provas, mas não tem a necessidade de chegar à frente; que prefere correr quase sempre na mesma rota; que não treina para correr, mas apenas corre por correr... Corre por prazer, corre para chegar bem.
A corrida é um esporte tão democrático que permite tudo isso. Afinal, qual é o esporte que, simples mortais, atletas amadores, podem praticar e se divertir na mesma prova que os atletas de elite?
Certa vez, eu estava participando de uma meia maratona que teve a presença de um corredor keniano (não lembro o seu nome). Eu já o havia encontrado na fila do banheiro, mas não tinha me dado conta de que ele era “o cara”, tamanha (e também a sua falta de tamanho) era a sua humildade ali entre nós, na galera.
Mas quando a corrida começou para valer, logo eu perceberia o “tamanho” do monstro que estava ainda há pouco ao meu lado. O cara não corria... Ele voava! E voava com tanta graça e leveza que parecia estar levitando, tamanha era a suavidade das suas passadas, longas e seguras. Infelizmente, não tive a oportunidade de assistir à sua vitória, pois, quando ele chegou, eu ainda estava no meio do caminho...
Mas não é só gente perfeita ou atletas que correm. Tem gente que, para correr, precisa de olhos bondosos “emprestados”. E, a pretexto dos olhos, esses verdadeiros anjos corredores, acabam emprestando muito mais do que isso... Emprestam a sua sensibilidade, ao descreverem as paisagens pelas quais percorrem durante o trajeto; emprestam uma palavra de incentivo quando necessário, e, principalmente, entregam-se de corpo e alma para que o corredor com deficiência visual possa sentir-se seguro para se entregar à sua corrida.
E como não se emocionar com um cadeirante cruzando a linha de chegada? Impossível, não é mesmo? Pois a vibração e a recepção das pessoas na chegada são praticamente a mesma oferecida ao vencedor da prova, mesmo que esse cadeirante seja o único participante da sua categoria.
É por isso que eu acabei me apaixonando por esse esporte, pois ele abraça a todos que o procuram, sem distinção, bastando um par de tênis, ou nem isso, pois tem gente que prefere correr descalço!
E aí, gente, vamos correr hoje?
[Comente este Post]
ADODB.Field error '800a0bcd'
Either BOF or EOF is True, or the current record has been deleted. Requested operation requires a current record.
/blog/default.asp, line 442 | |