UM GRANDE ANO

Junto à publicação do Ferdydurke de Gombrowicz, dos dois livros de César Aira e de Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño (em sensacional tradução de Eduardo Brandão), outra GRANDE notícia.

Leitores, regozijai-vos: 2006 tem sido um ano excepcional.

*

Enquanto isto, um post como deve ser: verbivocovisual.

*

Aproveite e leia uma resenha que demonstra como está tudo errado: não é a internet, os blogs ou os novos escritores que são superficiais, leves e indolores. É todo o resto, essencialmente os idiotas (que podem estar inclusive na internet, de cacharrel, bigodinho e tudo).



PIGLIA NAS ENTRELINHAS: DA SÉRIE "TÍTULOS DE LIVROS PROFÉTICOS"

Ricardo Piglia está entre os mais reconhecidos escritores latino-americanos surgidos após o boom protagonizado por Cortázar, Vargas Llosa e Garcia Márquez nos anos 70.

Praticante de uma literatura destilada em altas doses de metalinguagem, Piglia iniciou sua trajetória escrevendo contos e romances que faziam uma leitura muito particular da novela policial, em particular da norte-americana representada por Dashiel Hammett e Raymond Chandler.

A esse período pertence o romance Dinheiro Queimado, sério candidato ao mais profético título de livro da história da literatura. Ganhador do Prêmio Planeta em 1997, Dinheiro Queimado conta a história de um assalto verídico ocorrido em Buenos Aires na década de 60 e foi adaptado para o cinema pelo diretor Marcelo Piñeyro.

Afrontada por um suposto exagero na forma com que foi retratada a relação homossexual entre os protagonistas, a família dos verdadeiros assaltantes processou Ricardo Piglia, que perdeu a causa e boa parte da bolada recebida anteriormente com o prêmio.

E a maldição do título não parou por aí. Em 2005 ele perdeu outro processo relacionado ao livro. Gustavo Nielsen, escritor argentino classificado em segundo lugar no Prêmio Planeta, refutou a vitória de Piglia. O motivo: Dinheiro Queimado já teria sido contratado para publicação ANTES da divulgação do resultado pela editora, que também promove o prêmio. Resultado: menos 10 mil pesos na conta do escritor, que do dinheiro ganho com o livro parece ter visto apenas a fumaça.

Mas todos estes imbróglios em nada empanam o talento e a grande qualidade do argentino, pelo contrário. Em seus ensaios mais recentes como os incluídos no recém lançado O Último Leitor, Ricardo Piglia defende a crítica como sendo a forma moderna da autobiografia, onde "a pessoa escreve sua vida quando crê escrever suas leituras". Além de grande escritor, Piglia comprova ser um dos maiores leitores vivos, e só por isto merece ser mais lido pelo público brasileiro.

[ Este é o texto de minha vídeo-coluna mensal exibida no último programa Entrelinhas (TV Cultura, quartas às 22h30, reprise aos sábados às 1h45). E agora o meu rostinho dá o ar da graça, equívoco sabiamente evitado por Isabel Santana nas fotos aí embaixo. ]



3 FOTOS







[ As fotos são de Isabel Santana, ok? ]



ESTAÇÃO DA LUZ

Quatro preguiças no Jardim da Luz
Vindas de sabe-se onde.

De debaixo da ponte?
Do front?
De Belo Horizonte?

Ao lado do Jardim da Luz
tem a LANCHONETE ESPAGUETE
-- O Rei do Jabá no Feijão.

Vieram dentro de uma abóbora?
(e começa a discussão):
-- O certo é carne-seca!
(uma preguiça era paulista)
-- É charque!
(outra era sulista)
-- É carne-de-sol!
(deve ser mineira)
-- É jabá mesmo! E com macaxeira!
(só pode ser cearense. E de Barreira).

Vieram a jato de Reykjavik?
Com galochas de bolchevique?
Para fazer piquenique?

Que pandemônio!
Devem vir do Buraco na Camada de Ozônio!
Isso só pode ser coisa do Febrônio!

E a briga estica até a rua Aurora.
E segue para Pirapora.
De lá para Jijoca de Jericoacara afora.
E de repente as preguiças foram todas embora!

De onde elas vieram, de Xerém?
Para onde voltaram, Itanhaém?
De Nhenhenhém?
Para Nemvemquenãotem?
Vieram a pé ou vieram de trem?

Ah, só podem ter vindo de trem!

[ Poema publicado na Folhinha, não me lembro quando. No início do ano, acho. Mas vocês não lêem a Folhinha, certo? Hum, era o que eu pensava. ]



COOPERIFA NA FOLHA - ERRATA

foto de João Wainer

A revista da Folha de S. Paulo de hoje publicou um artigo que fiz sobre escritores da periferia de São Paulo, pessoas que gravitam em torno da COOPERIFA. O texto foi bastante editado e fragmentos inteiros foram suprimidos, assim como outros foram inseridos. Houve acertos e erros, e a editora Lulie Macedo recebeu meu aval para cometê-los, pois tive de viajar e não poderia realizar ou aprovar as alterações durante o fechamento da edição.

Alguns equívocos entretanto merecem comentários, e o último parágrafo da matéria tem uma hiperlotação deles (em itálico e negrito abaixo), que comentarei entre colchetes. Vejamos:

Figura rara, a Dinha. Assim como Sérgio Vaz, Sacolinha e Alessandro Buzo, eles não estão mais solitários como o ornitorrinco. Não é o tipo de gente convidada para a FLIP (Festa Literária Internacional de Parati), o badalado encontro de escritores que acontece a partir do dia 9.

[Primeiro, segundo e terceiro equívocos: 1. O escritor Ferréz - suponho que o mesmo "tipo de gente" que os citados - foi convidado para a FLIP em 2004; 2. A edição da FLIP deste ano é a mais acertadamente política de todas, com diversos convidados oriundos de outras zonas de conflito, como o angolano Ondjaki e o palestino Mourid Barghouti, por exemplo; 3. A inserção da frase me incomodou em particular pelo fato de eu já ter sido convidado da FLIP. Ou seja, fica parecendo que faço distinção entre mim e eles, o que não é definitivamente o caso. Para ficar claro: não me acho melhor do que qualquer outro autor por ter participado de uma festa literária, entendem? Só de pensar nisto me embrulha o estômago. Continuemos:]

Mas criaram outra, à sua imagem e semelhança: a FLAP, que em vez da bucólica Parati ocupa o concreto da praça Roosevelt.

[Quarto e quinto equívocos: 4. Do jeito que está parece que os criadores da FLAP - da qual também já participei em 2005 - são os caras da COOPERIFA, o que também não procede; 5. Salvo engano, os criadores da FLAP pertencem ao diretório acadêmico do curso de direito da USP do Largo do São Francisco, tradicional reduto da elite quatrocentona paulista. Isto não desmerece em nada a festa, claro, apenas MAIS UMA a dar oportunidade ao debate sobre literatura e sobre possibilidades de recuperação das ruínas de nosso sistema educacional, que é o que realmente interessa].

E fica aqui meu registro, com algumas tremas nos us, pingos nos is e beijos nas minas.

[ ERRATA DA ERRATA: Ana Rüsche esclarece: a FLAP é organizada por gente de toda a parte, a maioria mesmo é da FFLCH, mas tem ECA, Psicologia, Relações Internacionais e tem muita gente que nem USP faz! E não dá pra esquecer também o povo do Rio de Janeiro, que também é de toda parte. Acho que pode ser definidos como ¿escritores novos¿ e pronto, sem mais predicativos. ]



LITERAMÉRICA DE CABEÇA

Leiam uma entrevista a respeito de minha ida a Cuiabá em setembro para a Literamérica y otras milongas más. As perguntas são do Lorenzo Falcão.

Trechinho:
Você já viu entrevista com escritores sem clichês? Lá vai... Quais motivações te levaram e o mantêm na atividade literária?
Como a maior parte das pessoas que escrevem, eu permaneço na literatura porque não tenho saída. Sou um leitor contumaz e os livros têm presença em minha vida desde que me conheço por gente, então nunca tive escapatória a não ser ler e me expressar através da escrita. Com o tempo, observar as coisas do mundo e transformá-las através da literatura se torna um ato reflexo, parecido com uma cotovelada.

*

Por falar em ato reflexo, aqui, uma pausa para usar a cabecinha.



O FLANAR DAS VACAS NOS SHOPPINGS

O murmúrio e os olhares quietos.
Nunca para cima. A reza voltada
sempre a baixo,
ao mugido verde.

Os sinais, o relâmpago no céu.
A chuva, o silêncio.

Deve haver um deus para elas.
Alguém que as conduza,
vultos refletidos nos espelhos
d'água. Nas lâminas.

Pensar na prole, na descendência.
"Pobre netinho de outra.
abatido na trilha errada".

Aguardar a volta do filho.
Rumar à manjedoura.

(O verde da campina de alimentação
apenas na placa do All Parmegiana).

Ruminar hambúrgueres.
Rezar por grana.
Por mais grama.



BOAS & NOVAS

Vocês já devem saber que tem livro novo do comendador Oak Fields na área, né? Confiram então o quase-especial que o Prosa & Verso do Globo fez a respeito: aqui, ali, e acolá.

*


O que vocês certamente não sabem é que Monsieur Xavier também está para voltar. E esse ficou na gaveta muuuuuuito tempo - tenho uma cópia do original feita em 96, se não mengano. A respeito (ou quase) uma pergunta não incluída na entrevista que fiz com ele publicada na revista Cult (# 20, março de 99):

Fale um pouco sobre as novellas "Las Meninas" e "Remembranças da Menina de Rua Morta Nua'
São histórias dos tempos atuais, com personagens que a gente vê a toda hora na rua, ou não vê porque não quer. Uma é uma história de amor, a outra é de desamor. Coisas que todo mundo tem ou não tem. E tem o uso da cor como elemento narrativo. Acho que vai agradar. LAS MENINAS é uma história de amor entre um anão e uma menina e REMEMBRANÇAS não, é uma história de desamor, de um cara que quis comer uma menina e que a matou, por causa de um problema com drogas, talvez. A história de como LAS MENINAS surgiu foi assim, eu estava andando pela rua XV, a principal aqui de Curitiba, movimentada, e onde tem um bonde, assim, parado. Embaixo do bonde, num dia de sol, vi um menino de uns nove anos comendo, assim, à luz do sol, uma menininha. E ninguém via! Eu lá vendo, e pensando: "Será que só eu tô vendo isso, será que 'stou louco?" Uns três anos depois, vi na praça Osório umas meninas semi-nuas, assim, tomando banho no chafariz. Daí amarrei tudo e a história me veio, pronta. REMEMBRANÇAS é sobre o assassinato famoso de uma menina que houve em São Paulo, num desses circos meio freak.

*

Mais uma boa notícia? A Companhia das Letras lançará neste mês de julho uma obra-prima do modernismo europeu, o (inexplicavelmente) ainda inédito em português Ferdydurke, do polaco (mezzo argentino) Witold Gombrowicz. E eu tiro meu chapéu inexistente para a editora duas vezes seguidas.



ENTRELINHAS

Se observarmos apenas os desastres da política americana dos últimos anos esqueceremos a longa história de contestação do país que inventou o blues, o rock e a contracultura. No entanto os Estados Unidos da América sempre foram pródigos em gerar idéias fora da ordem, e muito desta tradição se deve a Henry David Thoreau. Nascido em Concord, Massachusetts, em 1817, Thoreau é o autor de Walden e A Desobediência Civil, além de ser considerado o pai da ecologia e da resistência pacífica.
Em Caminhando, precioso volume traduzido e prefaciado por Roberto Muggiati, Thoreau defende o ato da caminhada como um reencontro do homem com a natureza: "Enquanto todos os homens sentem uma atração que os aproxima da sociedade, poucos são atraídos fortemente pela natureza. Em sua reação à natureza, os homens me parecem em sua maioria, apesar de suas artes, inferiores aos animais".
Não apenas uma defesa do caminhar como exercício físico, Thoreau prega o flanar pelas cidades como forma de restabelecer o ritmo necessário para a correta apreciação da vida e um antídoto para a velocidade excessiva do mundo contemporâneo. E nisto lembra Baudelaire, que vagarosamente passeava pelas arcadas de Paris com uma tartaruga na coleira, matando o tempo.
A leitura do ensaio de Thoreau é complementar a de Um homem sem pátria, último livro de Kurt Vonnegut. Em uma feliz contiguidade de assuntos o ficcionista norte-americano promove feroz e engraçadíssima diatribe contra o que, segundo ele, motivou a guerra do Iraque, uma mera desculpa para a manutenção do petróleo necessário para milhões de carros americanos continuarem circulando. Na pré-história o ato de caminhar sobre dois pés foi fundamental para o desenvolvimento do cérebro humano. A todo momento Vonnegut parece perguntar: será que nosso hábito de andar sentados ao volante nos últimos séculos tem nos causado uma regressão? Henry David Thoreau certamente concordaria com a idéia.

[ Este é para quem perdeu a segunda colaboração com o programa Entrelinhas (quartas, 10h30, com reprise aos sábados, 1h) da TV Cultura. Só que aqui você não ouve minha voz. Bem, não sei se isto é vantagem ou desvantagem. ]



TOM GAULD. GÊNIO





SCOTT NO INFERNO

Desde muito antes e sempre os poetas brasileiros andam em bandos, em coletivos, em gangues. A condição gregária do poeta brasileiro é tamanha que, se lermos à revelia poemas de integrantes variados da mesma alcatéia, a singularidade não existirá: são lobos de uivo unívoco. E há também as torpezas da filiação, porém para isto podemos desenvolver uma fórmula: que todos os poemas emuladores sejam devolvidos às suas fontes. Assim desta maneira poetas de obra tímida (em extensão) como João Cabral de Melo Neto, Augusto de Campos ou Paulo Leminski de repente ficariam com as burras cheias. Resta saber se ficariam ricos de verdade ou apenas medianamente remediados. [ continue lendo ]

[ Início de artigo sobre a poesia de Paulo Scott que publiquei na revista gaúcha Aplauso ]



EU AVISEI

O fim da infância

Ah, época de Copa do Mundo é fogo... daqui a exatos quarenta e três dias muitos meninos e meninas em todo o mundo terão deixado de ser crianças antes da hora.
Copas do Mundo são especialistas nisso, em antecipar as coisas. Eu mesmo vi minha infância se escafeder num átimo: foi em 5 de julho de 1982. Quando Brasil e Itália começaram a jogar eu ainda era um moleque de 14 anos. No final da partida já havia nascido uma barba cerrada na minha cara, chegava quase no peito. E enquanto minha infância entrava no túnel do vestiário e desaparecia para sempre junto de Zico, Sócrates e turma, eu arrancava o meu primeiro fio de cabelo branco.
O problema de ser jogado na vida adulta desse jeito, sem vaselina ou KY algum, é que a gente fica meio cético. Não só no referente a futebol, mas em relação a tudo. Por exemplo, quando me casei e o padre perguntou à minha noiva se ela se casava por livre e espontânea vontade, ela disse que sim, mas eu que sou cético não acreditei muito, e murmurei um "mas é SIM de verdade?" que arrancou risos dos padrinhos. E quando minha filha nasceu e a colocaram em minhas mãos pela primeira vez fiquei com um verdadeiro circo de pulgas atrás da orelha. E perguntei à enfermeira: "Tem certeza que é a minha filha mesmo, né? Não é possível que vocês tenham se enganado de bebê, não é mesmo?".
Tudo culpa da Copa do Mundo.
E não é só comigo que é assim, mas com o Delei, com o Ary, com o Xandão, meus amigos do tempo do colégio: todos céticos de carteirinha que duvidam até da própria mãe. Absoluta e irrevogável culpa da Copa de 1982, tudo por conta de nossa infância surrupiada antes da hora.
Para você fazer idéia: quando ouvimos os comentários do Falcão naqueles jogos de futebol eu, o Delei, o Ary e o Xandão tapamos os ouvidos. E quando o Zico promete mundos e fundos dizendo que a seleção japonesa vai fazer barba e cabelo, sushi e sashimi na Alemanha, eu, o Delei, o Ary e o Xandão pensamos que os japoneses deveriam mais é abrir os olhos, se pudessem. Promessas de Zico nunca mais, entoamos em coro. Daquela trupe de 82 o único que merece algum crédito é o Arnaldo César Coelho. E só porque ao apitar a final entre Itália e Alemanha ele nos deu um gostinho esquisito na boca que nós, ingênuos que éramos, confundimos com felicidade.
Por outro lado a molecada de hoje em dia vê sua infância correr risco de extermínio bem antes da Copa do Mundo ter início. Sim, pois antigamente eram as crianças as encarregadas de decorar as ruas dos bairros, as calçadas, a pintar os muros com os nomes dos jogadores. Hoje em dia quem decora as ruas são os bancos e as companhias telefônicas. Qual a necessidade de meninos e meninas decorarem a rua se para onde olhamos vemos pôsteres e outdoors de Ronaldos e Robinhos? Hoje em dia as figurinhas dos álbuns são autocolantes, meu Deus! Não tenho certeza se a seleção brasileira é o time dos sonhos das crianças, mas dos publicitários certamente ela é. E que sonhos cheios de cifrões.
Pensando bem, até que tive uma infância legal: foi curta mas foi feliz.

[ No dia 28 de maio passado publiquei essa crônica na Revista da Folha. Então não digam que eu e Pelé não avisamos. ]



OTTO MARIA CARPEAUX COMENTA LOST

"Uma ilha separada de todas as realidades da terra firme é o lugar ideal para construir realidades imaginárias. Será que Lost se baseia na kantiana autonomia do espírito, que cria seu mundo? Não o creio. Antes me parece que a intrigante série de tv constrói seus mundos irreais mas possíveis porque sem contradições internas, assim como os matemáticos constroem geometrias não-euclidianas com quatro ou mais dimensões e aritméticas não-arquimédicas ou assim como os neo-positivistas constroem lógicas não-aristotélicas em que não vale o axioma do terceiro excluso, de modo que uma afirmação pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. São mundos impossíveis dentro da nossa realidade, mas perfeitamente possíveis dentro dela, porque em sua construção não entrou nenhuma contradição. São possíveis: geometricamente, aritmeticamente, logicamente. Mas moralmente? Transpondo-os para esse terreno, Lost tira conclusões que nos dão um novo frisson. Em seu mundo, na ilha do dr. Jack e companhia, o tempo é reversível: é possível modificar o que aconteceu, modificar o passado. Seria um paraíso, se fosse possível isso. Mas o preço é: não haverá futuro. E o paraíso vira inferno. Inverte-se a tese de Leibniz: este é o pior dos mundos possíveis."

[ Onde se lê Lost leia-se Bioy Casares. Idem para dr. Jack: em seu lugar leia-se Morel. O trecho supra foi retirado do posfácio da nova edição de A invenção de Morel. E aposto que a novela do cool mestre argentino é mesmo livro de cabeceira dos produtores da série, não? E também outros exemplares da literatura de ilha, do tipo O senhor das moscas (de sir William Golding) e A ilha do dr. Moreau (de H.G. Wells). Ilhas são lugares realmente fascinantes, diria Maria José Dupré. ]



PERFIL DO COZINHEIRO SELVAGEM

Na ocasião da visita a Buenos Aires para a Feira do Livro, o boxeur e interessante narrador Juan Terranova publicou um artigo no semanário Perfil sobre a recente onda de publicação de brasileiros na Argentina. Nem mesmo em espanhol minhas respostas soam convincentes.



OLHOU-O COM ESSA TRISTEZA DE HOMEM QUE ESTÁ ACOSTUMADO A VER MUITAS COISAS ESFARRAPADAS

Um dos principais mistérios de minha infância está esclarecido. Apesar de ser possível achar pela internet uma ou outra referência sobre o roteirista de hqs argentino Ray Collins, nenhum link me esclareceu quem era ele. Sim, pois para mim sempre foi óbvio que o nome do criador do tenente Zero Galván (aí embaixo no traço à la Milton Cannif de Ángel Fernández, o mesmo desenhista do período em que a série foi publicada no Brasil na revista Skorpio, nos anos 70) era um pseudônimo. Mas pseudônimo de quem?

Nesta entrevista, o maestro do chiaroscuro Jose Muñoz (outro argentino, para mim o mais influente desenhista do gênero hoje, além de ser o criador de Alack Sinner junto de Carlos Sampayo) esclarece tudo:

Collins era Eugenio Zappietro, um delegado de polícia que necessitava permanecer anônimo. As lições de economia textual e o virtuosismo frasístico de Collins (o título deste post é um exemplo) nada ficam a dever a Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Ele foi o meu Hammet e o meu Chandler particular. Ray Collins foi todo o meu Rubem Fonseca.



COPA E FOGÃO

Sobre a Copa: não dá para alimentar expectativas quando há adversários treinados pelo Pacman.

*

Você já pode ler Inferno pós-moderno - Marcas da contemporaneidade em Hotel Hell e outras obras da Geração 90, tese de mestrado do Adriano Quadrado que, a propósito, será defendida no dia 03 de julho às 10h30 na ECA-USP. Por favor, alguém vá até lá e confira a defesa, não tenho estômago para tanto. Estive em Waterloo, nas selvas do Vietnam e do Chaco, mas não costumo entrar em universidades. Depois me contem, se sobreviverem. E leiam o PDF: na entrevista falo mal de você, de ti, dele, dela, deles, de nós e dos demais sujeitos da literatura brasileira. Depois me coço, espirro e fujo para Cochabamba.

*

A musa dark da literatura brasileira andou aprumando foco. Ótimas aspas.

*

Conhece a Germina? Tenho uma página na revista, com três contos e minha bibliografia completa até agora.

*

No mais, travo luta renhida com Sonho interrompido por guilhotina. Nesta altura não tenho plena certeza de que as forças da democracia triunfarão, porém sigo insistindo. Nos intervalos, cozinho. Faz muitos anos que cozinho, mas nos últimos dois anos só tenho comido a própria merda que faço. Nunca me senti mais puro.

*

De resto é torcer para esse campeonatinho de futebol destinado a torcedores de segunda divisão terminar logo. O Tricolaço está ansioso para erguer a taça de tetra da Libertadores.



UM TELEFONE NA NOITE

ao Júlio do Amaral

Um telefone soa na noite.
Um telefone.
Seu toque atravessa o condomínio inteiro.
De madrugada. Toca, toca.
Ninguém atende.
O telefone insiste. A noite toda. Seu som atravessa
paredes de apartamentos,
sobrevoa quadras de futebol,
atravessa pensamentos.
Insistente.
Um telefone na noite.
Ninguém atende.
Ouço o toque em minha cama, embaixo dos lençóis, olhando pro teto.
Um telefone.
Levanto e vou até a janela. Fico na penumbra vendo aquela música.
Aquele som, ouvindo aquele vento sem rumo.
Ventania na escuridão.
Um telefone que ninguém atende.
Um som que voa na noite, que atinge minha cabeça,
que atinge a cabeça de meu vizinho. Ele acende a luz de seu quarto, posso ver.
E encosta sua orelha no vidro da janela. Ele também vê o vento.
A música na tempestade.
Um telefone que toca na escuridão noturna.
Não é notícia ruim, apenas um ruído.
Um telefone.
Outra pessoa acorda. A luz é projetada da janela do quarto em frente.
Afugenta o escuro, abrindo espaços na treva.
E outra, e outra pessoa.
Um telefone soa na noite. Não cessa nunca.
Nunca.
Chega às estrelas, subindo.
Todos descem de suas casas, vão até a quadra de futebol.
Os holofotes acendem: uma multidão.
De repente não é mais noite.
Todos vêem aquele som sumindo. Lá em cima.
Aquele som estilhaçado no céu.
Um telefonema de longe.
Atingindo quem o atenda.
Alguém que não está.
Alguém que já se foi.

[ Este texto é dedicado ao Júlio do Amaral, falecido sábado passado. É estranho demais ver seu blogue ainda no ar, ainda na corrente elétrica do mundo. Talvez ele também esteja, quem sabe? O Júlio completaria 27 anos hoje, dia 07 de junho, e certamente estaria conosco na farra de lançamento da revista Mercearia. Evoé, Júlio, eu beberei à sua lembrança. ]



SEM PRAZO DE VALIDADE

Sempre que posso, guardo o caderno Mais! da Folha de S. Paulo. Têm ensaios interessantes sobre cultura e comportamento, que não perdem a validade. Nem sempre leio, às vezes fica arquivado num gaveta. Dias desses, achei uma dessas edições, numa tarde chuvosa e o poema da contracapa despertou minha atenção. Li, reli, gostei.
Duas horas depois fui buscar minha amiga Simone para uma happy hour na Cia. da Pizza do Rio Vermelho. Não é que ela entra no meu carro com a mesma edição na mão, dizendo que tinha um poema para me mostrar? Detalhe: isso aconteceu no dia 13 de julho. O caderno Mais! era de 08 de maio. Vale registrar a sincronicidade, bem como o poema e seu autor, Joca Reiners Terron.


[ Tirado daqui. O poema referido está abaixo, na guapa versão castelhana de Cristian De Napoli. ]

Mare Orientale

I.
¿Qué decir?

¿Que tu olor seguiría en mis manos
si no existieran el agua y la necesidad de bañarse?
¿Que tu sonrisa interminable permanece en la memoria
resistiendo al olvido producto de los lugares a media luz?
No insistiré en batirme con una limitación así, porque nada
de lo que pueda decir se alzaría en vuelo superador de los recuerdos:
días de lluvia, seguidos de un domingo luminoso, del olor
de la carne, sonidos soñados al oído la noche entera.
La sensación de nuevamente descubrir un continente,
la risa para siempre perdida en un rincón de los labios.
Plumas de pájaro en tu nuca, y pies, y cavidades.
Cavidades en el anca inolvidable.
Sin que nuncacabe.
Nuncacabe.

¿Qué decir?


II
La parte en que no te toca el sol
en fin, la tocaré yo. La piel entre los dedos como
fémur en carne o remo en agua:

Rumbo al extremo de ti
en busca de mí.



BEM LONGE, NA NOITE

Fundo mergulho no desvelo da filha febril:
deliro com ela. Distante, o rumor dos estádios
arrebenta a noite em pólvora, enquanto
na penumbra do quarto conto dias, danos
e me assombro com o saldo. Quantos,
os almoços preparados por estas mãos?
A roupa nos varais encarde vistas, nada
de amaciante ou alvuras frente resultados fugazes
e fogos de artifícios que iluminem uma nesga
de calma, essa tranquilidade conquistada com
paracetamol e abraços cálidos sob o abrupto
vibrar e sustos ao som dos noturnos brados de guerra,
bem ao longe, desaparecendo com a chuva
evaporada no sol dos holofotes, depois apagando,
apagando, como o seu corpo emerge de mim,
apagando, nossa carne comum. Sobreviver a si mesmo
e então dar-se: somente assim a desistência de rugir
e abalroar algo que ruiu, recolher os dedos e não mais
aprisionar a fumaça saindo da boca nas manhãs
de frio, dragão falhado com carburador fritando óleo,
cabeça de homem libertando a dor pelos olhos.



DILEMA DE MARÇAL AQUINO 2.0

Muito já se falou sobre Mãos de Cavalo, o novo romance de Daniel Galera. Gostaria de acrescentar duas ou três notas de rapapé aos subjetivismos mal intencionados e rasteiros ou às leituras certeiras e equivocadas que surgiram por aí e que certamente continuarão a surgir:

1] É formidável como no livro Galera não perde a mão (de cavalo?) sobre o domínio técnico da estrutura narrativa e muito menos sobre a construção da linguagem. Em alguns momentos (como os mais descritivos, cuja precisão arroladora lembra procedimentos do nouveau roman, no entanto sem a mesma obsessão) ele arrisca, colocando-se no limite da chatice porém sem sucumbir nunca. Em diversas passagens da leitura me perguntei sobre a necessidade de citar tantos detalhes específicos sobre alpinismo ou cirurgia plástica (às vezes com frieza de lista de supermercado), para logo depois aquiescer: aqueles mergulhos nos jargões (ainda que superficiais) são fundamentais para a verossimilhança do protagonista, e aqui chegamos à principal qualidade da ficção de Galera, seus personagens. Insiste-se por aí na imaturidade dos livros anteriores do autor, mas a consistência humana dos personagens já estava presente em seu primeiro livro e, no mais, ao menos desde Gombrowicz a imaturidade deixou de ser defeito, e sim um mecanismo de reflexão literária sobre a imperfeição; não é o caso de Mãos de Cavalo, produto sóbrio e registro da atual propriedade de meios do autor;

2] Sobriedade ou austeridade são palavras-chaves para a visão de mundo na narrativa de Galera, mas em hipótese alguma confundo tais qualidades com frieza técnica ou conservadorismo de linguagem. O cara é antes de tudo um narrador, e sem complexos, inscrevendo-se na tradição decimonônica do romance realista, tão presente na ficção britânica de hoje em dia. Tampouco identifico qualquer lampejo de lirismo em Mãos de Cavalo. E este é um dos lances inestimáveis do romance. Basta de poesia ruim confundida com lirismo;

3] E com o livro de Galera chegamos a um update daquele Dilema de Marçal Aquino que já propus aqui e os leitores deste blogue talvez se lembrem: narrativas competentes e legíveis vendem tanto quanto textos experimentais e cerrados e isto é sinal de quê, de falência do leitor e do mercado editorial ou de todo um sistema educacional (e em consequência do Estado)? É torcer para que os anseios propostos por José Paulo Paes em seu (já clássico) ensaio Por uma literatura brasileira de entretenimento encontrem paliativo em Mãos de Cavalo. Seria mais do que merecido, além de redentor.




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