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Quarta-feira, 10/1/2007
Pílulas de amor e loucura
Marcelo Spalding

Já não é novidade um escritor jovem revelar-se na internet e publicar uma bela antologia de contos, mas por algum tempo se acreditou que essa geração, a geração dos adolescentes dos anos noventa, pudesse ser vista em conjunto como uma geração hedonista em crise de identidade. Algo meio Clarah Averbuck. Ainda bem que a sucessão de lançamentos dessa turma mostra a pluralidade de discursos, ideologias e propostas.

Ana Beatriz Guerra, carioca, nascida em 1979 (mesmo ano de Clarah e Daniel Galera, por exemplo), formada em jornalismo (mesmo curso de Galera e do qual Clarah desistiu no meio) e costumaz autora de textos ficcionais ou não para sites acaba de lançar uma coletânea de contos digna de um livro de estréia. Amor em pílulas (Íbis Libris, 2006, 126 págs.) reúne textos com variados estilos, narradores e temas mas consegue manter certa unidade ao agrupá-los em "contos de amor", "contos de loucura" e "quase contos", este último experimentos formais.

"Contos de amor" - a primeira parte e responsável pelo título do conjunto - revela uma narradora marcadamente feminina, intimista e voltada ao cotidiano, chegando a lembrar em alguns momentos Adélia Prado. Em "Fidélio", por exemplo, temos uma história de amor narrada a partir dos ícones cotidianos do casal que, ao invés de terminar em tragédia ou traição, premia o dia-a-dia e a cumplicidade das relações amorosas com o seguinte desfecho: "o beijo que você me dá é mais um de uma longa série. E sei que mais ninguém beijaria desse jeito. A não ser que esse alguém fosse você". Fica clara aqui a opção de Ana Beatriz pelo amor e não pelo sexo - ainda que o sexo apareça de forma equilibrada nos textos -, a opção pela convivência harmoniosa e não pelo hedonismo das relações frívolas.

Em outro conto desta parte, chamado "Prudente", surge o narrador em terceira pessoa e o protagonista é um homem morto. Mas não se trata de uma narração da memória do morto, como Brás Cubas, e sim da narração dos últimos momentos do espírito do protagonista na terra, a melancolia com que visita sua casa pela última vez e lá encontra a filha transando com o namorado e o filho ouvindo música clássica. Em nenhum momento o conto - ou qualquer outro conto do livro - deixa transparecer credo religioso ou dogmatismo, mas fica claro neste e em outros textos que a transcendentalidade da vida faz parte do rol de preocupações da jovem autora, algo também pouco comum no estereótipo de jovens escritores que se tenta construir.

A mudança para os "contos de loucura" não altera completamente o panorama do livro, ainda está lá o intimismo e o cotidiano, mas muitas histórias já se passam "fora da casa", na violência da cidade grande como em "Corpo de delito" ou numa tenda esotérica como em "A cigana da estrada". Aqui o narrador em terceira pessoa ganha muita força e os homens tornam-se protagonistas em diversos contos.

"Compro, vendo, troco, financio", por exemplo, narra a negociação de um homem para vender sua alma, um tema pra lá de batido mas que aqui ganha tratamento diferenciado em que a maldade não é questão de fundo, e sim a alma. Por isso, feita a negociação, Afonso lamenta que não "pode desfazer o trato, mas este é o preço que pagou pela verdade. A alma não é nada do que dizem, mas, pelo menos, Afonso já não tem mais dúvidas".

Poucas páginas adiante, passando da liberdade literária de inventar mundos à possibilidade literária de representar o pior dos mundos, "O bonde" conta uma noite de um homem numa cidade grande do futuro em que "os poucos que ainda têm coragem de deixar o conforto de seus lares são os repórteres, os taxistas, as putas e os entregadores" porque "foi instaurada definitivamente uma ditadura do pó e não há quem possa interferir". Neste cenário o homem contrata uma prostituta e, depois de saciado, pede que ela durma com ele, mas a mulher nega. Para aliviar um pouco a solidão, enche sua boneca inflável, e chega a oferecer pó para ela antes de injetar em si próprio: "prepara tudo e injeta aquele montante de realidade na veia, porque já não suporta mais viver de ilusões.".

Entre os contos de amor e loucura estão os quase contos, exercícios que podem ser de oficina literária, enumerações, textos interessantes em que a qualidade literária não se perde e nem a preferência pelo cotidiano, sempre pano de fundo nos textos de Ana Beatriz.

Reparo talvez se faça a uma frase do apresentador do livro, João José de Melo Franco, que na orelha diz que Ana Beatriz "vem nos curar de nossa falta de promessas literárias". Não é verdade, Ana Beatriz não vem curar e nem precisa curar: o problema é que o país e a grande rede de novos escritores é muito maior do que qualquer bom leitor possa apreender, e gente como meus conterrâneos Ítalo Ogliari, Monique Revilllion, Daniel Rocha e Caco Belmonte permanecem desconhecidos e deixam em alguns a falsa sensação de vivermos uma "falta de promessas literárias". Quiçá Ana Beatriz consiga emergir nesse oceano e ajude pessoas com este pensamento a mudarem de idéia.

Para ir além
Amor em pílulas

Marcelo Spalding
10/1/2007 às 15h43

 

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