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Quarta-feira, 21/3/2007
Jornalistas típicos
Julio Daio Borges

Meu nome é Vera Mistake. Tenho 37 anos e estou aqui na redação, toda suada e com sede, lendo esta droga de pauta. Saco, mil vezes saco. De novo, entrevistar o empresário metido a besta, Marco Antônio Pinho Soares, que dá última vez queria ler minha matéria antes de sair... De novo, o lançamento do condomínio Aldeias de Aldebarã? E por pouco o Onofrinho permitiu o desaforo. Estudei pra isso? Doutor Soares, de quanto é a inversão nesta fase inicial do projeto? Ah, cadê a fama, onde uma vida cheia de bravura e camaradagem? Quando vou conseguir escrever uma história de verdade? como dizem na América. Quem vai ler esta joça? Sossega, nega, melhor pedir logo carro e fotógrafo. Você ainda tem que começar a redigir este especial de domingo sobre profissões do futuro.

* * *

Na faculdade, Vânio Vanildo sonhava com as glórias da profissão. Iria ajudar a desmascarar "isso tudo que está aí", esta vergonha de governo, esta concentração de riqueza na unha da pirâmide social, esta acumulação de beleza e conforto na cara da burguesia que... fedia e fede, como dizia um dos heróis da resistência pop dos 1980. Na redação, hoje, cético, ainda pensa do mesmo jeito, "isso tudo que está aí" - seu axioma desde sempre - é uma bosta. Mas tenta achar o sentido da profissão todo começo de noite, entre o lide e o sublide, ao escrever a centésima suíte sobre a dura resistência que a Assembléia impõe às iniciativas do governador, a milésima nota sobe a evolução do preço da cesta básica no semestre ante "igual período do ano passado", a porrilhonéssima frase sobre o número de discos que o gênio do rock gravou... E, no entanto, ao assinar o texto, desiste toda vez; no fundo, sabe agora e aceita, o jornalismo não é um ofício intelectual, na verdade o que faz difere pouco do empacotador de press-release, do balconista da quitanda ao pesar o quiabo da freguesa.

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À porta da sala, Romualdo Quelesmão esboça um meio sorriso, que seus olhos negam. Se arrasta até a reunião que deveria começar às cinco, mas cada editor chega quando pode. Sabe que ninguém sabe o que faz ali, além de eviscerar a História. Sente o estômago repuxar ao ouvir o editor de cultura pretender que o romance, qual?, vá para a primeira página; mas se agüenta com um chupo no Toddynho. Na Agricultura, chuvas no sul destroem lavouras de café; é pouco, ele pensa, choveu, molhou, que querem? O aumento do roubo de carros na zona sul... bem, deveria se envergonhar a subeditora de Cidades. Mas é claro, Marcelo, o clássico de domingo salvará nossas vidas; foto no alto, corpo 72: Agora é tudo ou nada. Domingão de decisão. Quelesmão, é sua vez, acorda! Chama-lhe o secretário. O que temos? Mon... balbucia, Mont... Montan..., gagueja, em pânico por falhar na sua hora. Rebentam de rir. Ele não mexe um músculo. Está tonto, reflete, o vermelho-e-branco da azulejaria tramada em pequenos triângulos lhe dá náusea, vai cair, tombar no chão imaculado? Então desperta, zumbi de novo? Ah, não. Alguém entrou em cena para levar a manchete: Montanhas pariram 849% a mais de ratos no ano passado.

Antônio Siúves, no A Titica Cotidiana, que linca pra nós.

Julio Daio Borges
21/3/2007 à 00h17

 

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