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Segunda-feira, 12/3/2007
Amar é burocrático
Pilar Fazito

Deu ontem, no jornal do meio-dia: eleitor que deixou de votar nas últimas eleições e não justificou o voto pode ter o título de eleitor cancelado. Nunca fui muito dada à ilegalidade e confesso que uma notícia dessas me cai como se uma diretora de escola apontasse seus dois dedos indicadores para mim, vociferando, me julgando e quase me chamando de burra. Um chapeuzinho pontudo, com orelhas, e um chá de cadeira atrás da porta completariam a cena. Por isso, a boa aluna aqui, imediatamente, pegou a bolsa e foi bater pernas no TRE, pedir perdão ao juiz e tentar justificar a falta às urnas e a demora em me apresentar à justiça eleitoral.

Número da senha: 128. Isso significa que eu tenho 14 números à minha frente antes para poder pensar numa justificativa plausível. O que poderia dizer? "Sra. funcionária do TRE, por favor, queira dizer a Sua Excelência, o Sr. Juiz, que não compareci às urnas no segundo turno das eleições do ano passado porque estava noutra cidade... é que eu estava completamente apaixonada por um homem. Aceitei o convite dele, larguei tudo e fui atrás, acreditando que fôssemos viver felizes para sempre, como nos contos de fada. A Sra. entende, não é mesmo? Caí no conto da fada!" Com certeza, a funcionária seguraria a minha mão e, com a vasta experiência que aparenta ter, me consolaria. "Pobre coitada, eu sei como é isso." Ou não: "E você acreditou?! Vai ser ingênua, hein, minha filha?"

Faltam 10 números... Não. Você precisa justificar o voto, não a sua vida. Vamos lá... Algo mais burocrático e dito com firmeza. "Sra. funcionária, não votei porque estava em outra cidade." "A trabalho?", certamente ela vai perguntar. "Não... por a-a-a...amooooooooooor...", e eu recomeçaria o chororô. Não. Definitivamente. Paremos com isso. Algo curto e grosso! "Por que você não votou nas últimas eleições, minha filha?" "Porque eu não quis! Pronto! Não tava a fim, sacou?"

5 números... Não posso ser tão grossa assim. Um meio termo. Vejamos... Inventar que viajei a trabalho? Ou: "porque fui visitar a família", embora não tenha ninguém da minha família morando em Natal... A passeio? Não, fica parecendo que sou alienada e que não me preocupo com o futuro político do país. E isso seria uma calúnia!

3 números. Arf! Tá chegando a minha vez e eu ainda não sei que diabos dizer... "Mea-culpa, mea maxima culpa! Agora me dá logo esse certificado de quitação eleitoral!"

2 números... "Motivos pessoais que não posso revelar."

Fudeu! Sou a próxima e não faço a menor idéia do que dizer. Dá tempo de apelar para algum santo? Aliás, tem santo da oratória impecável? Demóstenes não era santo e nunca vi ninguém invocar orador grego...

128!

Sabe aquela hora que parece não passar nunca, entre a leitura do número no painel, o levantar-se da cadeira, dirigir-se para o guichê, em câmera lenta, enquanto a mulher fala com a voz toda enrolada "o pró-ó-ó-óximmmo"?

Para alongar ainda mais o percurso que se derrete como os relógios de Salvador Dali, uma criança corre e atravessa o meu caminho, tudo em slow-down. E em slow-down, tropeço na menina e quase deixo cair senha, papéis, bolsa e agenda.

"Cento e vinte e oito!", grita a funcionária. Eu me sento diante dela, entrego a papelada. Entro muda e saio calada. A atendente sequer me pergunta por que não votei ou o que estou fazendo ali. Emite logo um certificado e uma solicitação ao juiz para regularizar minha situação eleitoral. E só. Passar bem.

"Passar bem?!" E o que eu faço com todos esses minutos de angústia numa fila burocrática pensando em que gaveta do ostracismo devo enfiar tanta justificativa?

Saio dali com a impressão de que ficou tudo entalado na garganta, junto com um amor inacabado... Justificativa para quê? E quem quer saber? Talvez o amor seja menos burocrático sem elas, tanto quanto os certificados de quitação eleitoral.

Pilar Fazito
12/3/2007 às 16h53

 

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