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Domingo, 8/7/2007
A Flip como Ela é... III
Julio Daio Borges

A maior frustração da FLIP 2007 foi a mesa do J.M. Coetzee, que entrou, leu trechos do seu novo livro, Diary of a Bad Year, e, depois, saiu. Assim. Uma menina que estava atrás, ao lado do Augusto do CPFL Cultural, exclamou em bom carioquês: "Pé-ra-ê! É ih-súúú?". O Augusto, mesmo com toda a experiência de reger uma programação mirabolante em Campinas, fez cara de paisagem e não respondeu nada. A platéia foi saindo, atônica, e só começou a xingar lá pelo meio da Ponte da Amizade. O Guilhermão Conte, que vinha da Praça da Matriz, já plenamente recuperado de sua intoxicação alimentar, exclamou para mim: "Pô, por que ele não mandou logo o livro?". Era verdade. O livro era maravilhoso, com pequenos ensaios sobre Dostoiévski, o corpo humano e a matança de animais, mas dava perfeitamente para ler em casa. Não precisava vir até a Flip para ouvir o Prêmio Nobel com sua voz musical...

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E meio bobinha a leitura dramática de Beijo no Asfalto, de Nélson Rodrigues, logo depois (mesa das 22 horas), com concepção de Bia Lessa e uma porção de nomes famosos, como Nelson Motta (no papel principal), Jorge Mautner (no papel do investigador) e Sérgio Sant'Anna (entre outros escritores). O Mautner foi um dos poucos que valeu a pena, o Nelsinho, talvez, pelas histórias do Nélson, mas os outros, mesmo o Sérgio Sant'Anna, não tinham a menor experiência no negócio. Liam mal, sem impostação, erravam, tinham de voltar (e jogavam um certo "charme", como se "errar" fizesse parte do espetáculo...). E mesmo a participação do Domenico (meu colega de pastel no primeiro dia) foi menor, tocando um pouco de bateria, e lendo trechos, mas ele também não é leitor dramático... Enfim, não estava ensaiado e não deu pra entrar no clima da coisa. Eu e a Carol, à beira de perder os sentidos (interessante como a leitura chocou Samuel Wainer, que pela peça expulsou Nélson do Ultima Hora, porque, ontem, ela dava realmente sono), saímos no meio do segundo ato.

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Boa a mesa "Narrativas de Conflito", imediatamente anterior ao Coetzee, com Lawrence Wright e Robert Fisk. Mais uma daquelas patrocinadas pela Piauí, que manteve o mesmo bom nível das outras do ano passado, embora não fosse tão "histórica" quanto a idéia de trazer Lilian Ross e "queimar o filme" de Christopher Hitchens (em 2006). Apelativa, no entanto, a tentativa de polêmica por parte de Fisk, que lembrou um pouco o Self (no dia anterior), em sua histeria e eloqüência, com todo o british accent. A mediadora, cujo nome não consegui levantar ainda, foi brilhante e propôs que, a partir de certo ponto, um jornalista entrevistasse o outro. O problema foi que Fisk quis provocar Lawrence (que era americano), colocando os Estados Unidos em posição difícil. Lawrence contra-atacou, foi um pouco ingênuo e acabou desistindo do embate. Perguntou a Fisk: "Você acha que os Estados Unidos mereciam ser atacados no 11 de Setembro?" (já que Fisk é especialista em Oriente Médio). "Que pergunta mais idiota, Lawrence!? Você obviamente já sabe a resposta: ninguém nunca merece ser atacado! Você acha que o Iraque merecia ser atacado depois???"

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O Edu Carvalho - que bateu em 2007 o recorde mundial em número de posts sobre a Flip - falou uma coisa certa: alguns autores, assim como alguns jogadores de futebol, jogam para a platéia. O Fisk, por exemplo, foi a correção política em pessoa. Era, naturalmente, contra a guerra, contra a violência e contra governos em geral (o que arrancou aplausos e assobios logo no início da sua fala). Mas - a própria mediadora percebeu - era viciado em guerras e provavelmente não conseguiria viver sem elas ("Robert, como é o seu dia quando você não tem nenhuma guerrinha por perto, hein?"). Ou seja, quando tinha público, repetia o que todo mundo queria ouvir (a guerras são desumanas etc.), mas, no íntimo, não agüentava ficar longe das bombas, dos soldados e até da matança. Leu um trecho de um livro seu, sobre um morticídio qualquer (ele colecionava vários), com tanta eloqüência que eu fiquei desconfiado. Se ele se dizia tão chocado com a violência da guerra, como podia se excitar tanto, ao simplesmente reler algo - teoricamente abominável - que antes presenciou? Resultado: se até ver a mesa, eu queria ler o Fisk, perdi o interesse; vou, na verdade, continuar meu Lawrence...

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Cabulei, ontem, as outras mesas da Flip, mas obtive informações privilegiadas, dos meus soldados no front avançado, que confirmaram minhas piores suspeitas. O César Aira se revelou o Diogo Mainardi da Literatura Latino-Americana. Repetiu, aqui, o que já havia dito pelos jornais, que o Carpentier era medíocre e que o Garcia Máquez também era (por exemplo). Queria chamar a atenção para si, evidentemente. Funciona assim: você ataca uma unanimidade, consegue com sorte publicidade e, no momento subseqüente, todo mundo quer saber quem você é; porque: ou você é muito burro (e corajoso) ou você é um gênio (e está apenas falando a verdade). Eu sei que todo mundo lê o Diogo Mainardi na esperança de que ele seja justamente o segundo caso; mas eu só acho o Diogo genial em fazer o que ele faz. Só (repito). É como no xadrez, e na frase do Shaw ou do Millôr: as polêmicas só servem para exercitar a habilidade em criar novas polêmicas - não resolvem os grandes enigmas da humanidade. E com o César Aira, que será esquecido até a próxima Flip, não foi diferente ontem.

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E por falar em correção política (e em xadrez: se você perdeu aqui o raciocínio, retroceda agora dois parágrafos), a mesa da Nadine Gordimer e do Amós Oz começou com um clima de cavalheirismo insuportável. Afinal, em plena Festa Literária (qual seja), quem vai destronar um Prêmio Nobel de Literatura? Certas honrarias eu considero prejudiciais ao ser humano, porque, quer queira quer não, o sujeito fica se achando um semideus na Terra - e não é. Todo mundo, aqui, ficava apontando o Coetzee, como se ele fosse o Dalton Trevisan em Curitiba (vide "Eu vi Deus", ou algo assim, no Digestivo mesmo, assinado pelo Polzonoff...). Nessa mesa, eu ainda entrei numa outra saia justa, porque, de repente, a Liz Calder, idealizadora da Flip, veio sentar do meu lado, e eu, por cavalheirismo também (afinal, sou um gentleman), achei que não poderia sair bem no meio da performance. Para completar, a própria Liz apresentou a mesa (herself), apontando Amos e Nadime como dois dos maiores escritores andando sobre a Terra... (Céus, não são, não!)

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O papo melhorou sobremaneira quando eles pararam de discutir coisas sérias como o futuro da humanidade (leia-se: Oriente Médio e África do Sul) e passaram às futilidades. Amós disse que acha a família uma das instituições mais absurdas, risíveis e contraditórias da História - mas que, mesmo assim, elas continuam a existir (e os seres humanos continuam lutando para preservá-las - apesar de todo sofrimento embutido). Amós teve milhões de problemas com seu pai, e pode-se dizer que, em todos os seus livros, ele volta à famigerada figura do pai (father figure). E falou, portanto, do pai, antes de ontem. Disse que, quando este tinha 93 anos, chamou Amós, então com trinta e tantos, para ter, como ele, uma conversa de homem pra homem, sobre as mulheres (Amós já era casado e com três filhos). "Descobri, nas minhas investigações, que, em certas coisas, as mulheres são exatamente iguais aos homens; e em outras, elas são completamente diferentes de nós - agora, só falta eu separar umas das outras..."

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Amós não resistiu ao clichê, de todo escritor, afirmando que gostaria de, de repente, tirar umas férias, e parar de escrever, sei lá, por dois anos... "Para quê, Amós? Pra quê isso?", não agüentou Nadine. "Você iria ficar fazendo o quê, nesses dois anos?". "Ah, de repente, eu poderia tentar outra profissão...", retrucou humildemente Amós. "Sempre quis ser bombeiro, poderia ser uma oportunidade de recomeçar...". "Mas você já é bombeiro, Amós - você sempre foi bombeiro", fechou lindamente Nadine, e o céu brilhou mais estrelado lá em cima... Então eu pensei que, de certa maneira, é isso que algumas pessoas vêm buscar na Flip e, em certa medida, nos escritores, uma "mensagem" que possa transcender o evento em si, e que possa ser carregada para além daquela noite (para a vida). Porque os livros, certamente, serão esquecidos, os escritores, possivelmente, em alguns anos, e uma mensagem, num dia bonito em Parati, pode ficar. Ou não? [Continua...]

Julio Daio Borges
8/7/2007 às 11h30

 

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