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Quarta-feira, 1/8/2007
Coetzee, um escritor inventivo
Daniel Lopes

Slow man (Penguin, 2006, 266 págs.) é o livro mais auto-centrado de J. M. Coetzee. Foi publicado agora no Brasil pela Cia. das Letras (Homem lento, 280 págs., tradução de José Rubens Siqueira). Seria preciso reler para fazer um comentário mais aprofundado. Mas de primeira dá para perceber que - embora obras anteriores do sul-africano já tenham abordado o processo de criação, a relação do escritor com seus personagens e com seu meio (Foe, ainda não traduzido por aqui, que tem Daniel Defoe e Robson Crusoé como protagonistas; O mestre de Petersburgo, sobre Dostoiévski; Elizabeth Costello, um romance-ensaio) - esse mais novo romance não apenas discute a criação literária, como o faz por meio de uma atmosfera kafkiana, ao trazer à cena Elizabeth Costello, alter ego de Coetzee e co-autora e co-participante do enredo que se desenrola ante nossos olhos. Ela terá longas conversas com Paul Rayment, o personagem central. (Por isso, não procede a observação que Marina Monzillo fez na IstoÉ, de que o leitor pode sentir falta de diálogo.)

Rayment sofreu um violento acidente enquanto andava em sua bicicleta numa bonita manhã australiana, e como conseqüência teve uma perna amputada. Desespera-se, não vê mais sentido na vida. Em seguida, apaixona-se pela enfermeira que lhe presta serviços em casa, uma imigrante croata, casada e com três filhos. Tenta se agarrar a essa forma bastante peculiar de amor como um motor para continuar vivendo. Nessa esfera do livro, são discutidas questões como velhice, morte e amor não retribuído.

Quando Elizabeth Costello irrompe em cena, como que saída do nada, ela passará a discutir com Rayment, entre outras coisas, a estrita relação do escritor com suas criaturas. Rayment repetidas vezes lhe pergunta por que ela foi se ocupar logo dele, por que foi escolher um sujeito tão normal, com uma vida tão sem emoção, como personagem de um livro. Ao que Costello, enigmática e furtivamente, sempre responde que as coisas são assim porque têm que ser, Rayment a escolhera assim como ela o havia escolhido, e uma vez que começara a se ocupar dele, tinha que levar o processo até o fim, por mais inconcluso que este viesse a ser.

Essa seria uma história banal nas mãos de quase qualquer outro escritor contemporâneo, mas quem já freqüentou outras páginas de Coetzee sabe o que esperar de Slow man - não a santificação do escritor, da literatura, não a redenção dos personagens por meio de ações bondosas; mas desilusão, a exposição de personagens de procedimento deplorável (mas que sabem ser amáveis, em outros momentos), a desmistificação do processo literário, feito por indivíduos tão cheios de defeitos e fracassos quanto seus piores personagens.

Por último, há que se notar que uma atmosfera kafkiana tampouco é nova na obra de Coetzee. À espera dos bárbaros pode ser encarado como uma homenagem (e que homenagem!) ao autor de Na colônia penal. Para não mencionar uma dívida do sul-africano com Kafka já no título do seu Vida e época de Michael K. Apenas, novamente, essa característica chega ao limite em Slow man, que se não é o melhor romance de Coetzee, certamente é, ao lado de Foe, sua obra mais original.

Daniel Lopes
1/8/2007 às 10h40

 

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