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Quinta-feira, 16/8/2007
Letra de música é poesia?
Débora Costa e Silva

Uma viagem pelo tempo e espaço dentro do universo das poéticas letras de música. Se fosse para resumir em uma frase a aula que o letrista e jornalista Carlos Rennó deu no curso de MPB do Espaço da Revista Cult, na última terça-feira, seria essa. A viagem durou quase duas horas e, apesar de não termos saído da sala de aula localizada próxima à estação Vergueiro do metrô, fomos longe. De Orestes Barbosa a Prince, analisando rimas, estrofes, influências musicais e comentando as curiosidades, Rennó mostrou exemplos diversos da chamada "poesia cantada", ultrapassando os limites da MPB.

"Para mim, é muito claro que letra de música é uma modalidade de poesia, é poesia cantada", dispara o letrista logo no início da noite. E explica: "É poesia porque é palavra em forma poética e se dá num espaço de melodia, assim como a poesia literária se dá num espaço em branco da página". Poético, não? A grande "mágica" que faz uma letra ser considerada poesia na verdade não depende só de seus versos, mas da combinação de letra e música. "Quando palavras e sons se aderem, algo mais incide sob a música, fazendo com que ela ganhe uma força poética maior e mais intensa que o mesmo verso ou a mesma frase melódica separados."

O primeiro letrista-poeta que Rennó considera importante é Orestes Barbosa, que produziu grande parte de sua obra nas décadas de 20 e 30. Além de escrever poemas literários, fazia muitas parcerias com Sílvio Caldas, entre elas, uma canção muito famosa, "Chão de estrelas". "Ele foi uma espécie de pré-Vinicius (de Moraes) por se dedicar à música e à poesia" comenta. Um dos trechos mais bonitos e poéticos de sua famosa canção foi destacado na aula:

A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua, furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
Tu pisava nos astros distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão


Esta música contém um exemplo de construção de imagem característico de um poema. Há uma associação entre o céu estrelado e o sal, a luz da lua no chão, formando o chão de estrelas, que dá nome à música. Uma das histórias curiosas que Rennó nos confidenciou foi a de que o nome da música era "Pomba rola que voou", por conta de um outro trecho da canção. Por sugestão do poeta Guilherme de Almeida, ele mudou (e salvou a canção de um título não muito romântico).

Enquanto falava de Barbosa, Rennó se confundiu e acabou soltando o nome de Prince no meio da conversa. Se justificou dizendo que Prince também tem letras que fazem associações de imagens e metáforas, como "Chão de Estrelas", mas em outro universo. "When 2 R in love" seria uma delas. "Os artistas podem ser de origens completamente diferentes, mas há um plano em que eles conversam", filosofa.

Além do casamento entre letra e melodia, questão também detalhadamente explicada na primeira aula do curso por Luiz Tatit, Rennó ressalta a importância do intérprete em uma canção e destaca Dorival Caymmi como um dos mais exemplares. E ainda elegeu a música "Coqueiro de Itapuã" do baiano como uma das mais poéticas de toda a história da MPB. "Não há nada melhor do que Caymmi cantando Caymmi, aquilo se instaura, no ambiente em que está se ouvindo a canção, não é simples como pode parecer."

Apesar de enfatizar várias vezes a grandeza do trabalho de Vinicius de Moraes, classificando-o como um dos maiores poetas do Brasil, Rennó discorreu mais sobre a obra poética de Caetano Veloso e Chico Buarque do que do parceiro de Tom Jobim. Uma das análises mais profundas foi feita com a letra de "Sampa", da qual o jornalista diz não entender o porquê de sua popularidade, pois se tornou quase um hino da cidade. "Não faz sentido, pois ela apresenta elementos típicos de poesia erudita, não de poesia de canção feita por um cancionista que quer que sua canção se torne popular. Caetano não facilitou."

Nem sempre se pode explicar as razões de uma música se tornar popular, mas em contrapartida ele acredita que nós brasileiros temos mais canções intelectualizadas do que os americanos, que são os reis da música popular no mundo. "Mais até do que nós, porque eles inventaram um negócio chamado jazz". E é esse ritmo uma das grandes paixões do letrista, que produziu em 2000 o CD Cole Porter e George Gershwin - Canções, Versões. Além das versões, Rennó também é parceiro de vários músicos importantes como Gilberto Gil, Peninha, Tom Zé, Chico César e Lenine. E quando é ele o compositor, o que vem primeiro: a letra-poema ou a melodia? "Eu prefiro fazer letra sobre música, fica mais poético. Mas tem muito parceiro que me pede a letra primeiro, só que aí, por conta da influência literária, acabo escrevendo demais", conta, rindo.

Para ir além
Curso de MPB do Espaço da Revista Cult

Débora Costa e Silva
16/8/2007 às 18h05

 

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