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Domingo, 13/1/2008
Vizinhança
Julio Daio Borges

Salvei um copo. Fui apanhar o cinzeiro na mesa, esbarrei no copo que rolou até a beirada. Minha mão trêmula da ressaca conseguiu alcançá-lo a tempo. Talvez nem tudo esteja perdido.

A vizinha discute com o marido. Ela fala do som alto que eu ouvi até de manhã. Ele parece que não liga muito. O cara é meio surdo, fala alto e cuspindo e ela diz pra ele não cuspir nela. Diz que se ele fosse homem me dava um tiro na cara, que a vida deles virou um inferno desde que mudei pra cá.

Esses dias, encontrei o cara com o ouvido encostado no outro lado do muro, sentindo as vibrações do meu som. Pensei em ir lá, mas ao mijar e me ver no espelho, desisti. Acho que ela tem razão, eu mereço um tiro na cara. Meus dentes parecem pequenos cadáveres. Meu rosto cansado e sofrido não me diz mais nada. Não, não tinha jeito.

Olhei pela janela e eles ainda estavam lá. O cara ficava olhando pra boca da mulher com a única cara que ele, naquela altura da vida, poderia ter. Foi aí que me veio a idéia. E se eu comesse a vizinha? Quem sabe ela parava de brigar um pouco com ele, eu já não agüentava mais ver aquilo. Liguei o chuveiro pra fazer a barba.

Ele trabalhava numa fábrica de sapatos ou de absorventes. Saía cedo e só voltava no início da noite. Ela ficava lá, lavando, cozinhando, e sempre tentava acompanhar o rádio com aquela voz horrível, com aquele corpo horrível. Mas eu também era horrível. Naquela vizinhança, ninguém sabia o que era o amor. Talvez um casal de estudantes que morava há três ou quatro casas à minha direita. Eles ainda não haviam vivido o suficiente.

Era sempre assim, tudo uma questão de tempo.

José Guilherme Fidelis, no seu artificcional, que linca pra nós.

Julio Daio Borges
13/1/2008 à 00h49

 

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