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Quinta-feira, 5/6/2008
Festival da Mantiqueira
Eugenia Zerbini

A ordem dos fatores não altera o produto (na estrada, de São Francisco Xavier para São Paulo, vim repassando a lição de matemática). Talvez acarrete mudanças nas operações de subtração e divisão. Como nem dividir nem subtrair foi a proposta do Festival da Mantiqueira, Diálogos com a Literatura, encerrado no último domingo (01/06/2008) naquele charmoso distrito do município de São José dos Campos, posso ousar e iniciar o relato do evento pela abertura de seu terceiro dia.

O festival literário ― uma inspirada e brilhante realização da Secretaria Estadual da Cultura, Prefeitura Municipal de São José dos Campos e Fundação Cassiano Ricardo, com o apoio da Livraria Saraiva e produção da Associação Paulista dos Amigos da Arte (APAA) ― teve início na sexta-feira, dia 30 de maio. Além de oficinas destinadas a professores e alunos da rede pública e para bibliotecários (previamente escolhidos para participar do evento por meio de concurso), o ponto alto do acontecimento foram as palestras abertas que contaram com a presença de escritores e gente das artes.

Sob o título de "Diálogos da Literatura", com a mediação competente de Cunha Júnior, no segundo dia (31/06), pela manhã, Suzana Amaral, Marçal Aquino e Moacyr Scliar discutiram a relação da literatura com o cinema. À tarde, pelo programa, Fernanda Takai, Nelson Motta e Zuenir Ventura visitaram as relações entre a literatura e a bossa nova. Antes deles, em carreira solo, o escritor Milton Hatoum dialogou com o público sobre suas obras, mais que premiadas (Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado, todos editadas pela Companhia das Letras).

O terceiro dia (01/06) ― cuja programação vespertina, contou com um bate-papo com o escritor Marcelo Rubens Paiva e com o painel sobre as relações entre as letras e a televisão, a cargo do trio formado por Bruna Lombardi, Lauro César Muniz e Mario Prata ― foi aberto com chave de ouro. Fernando Morais discorreu sobre seu último livro, O Mago, saído do forno editorial na última sexta-feira (dia de abertura do evento Diálogos da Mantiqueira), e passado às livrarias do país em seguida.

Como todos sabem, trata-se da biografia sobre Paulo Coelho, em cima da qual Fernando Morais ― autor das elogiadas biografias sobre Assis Chateaubriand, Olga Benário e Marechal Montenegro ― trabalhou durante os últimos quatro anos. Entregue a editores espalhados por 40 países, O Mago teve sua sessão inaugural de autógrafos durante o festival de São Francisco Xavier, evento que tem todos predicados para entrar de forma definitiva na agenda cultural do Estado de São Paulo.

Mantendo a platéia encantada (além de jornalista e biógrafo exímio, Moraes tem o dom da palavra, um causeur, seguindo a velha tradição francesa de mesmerizar os ouvintes com casos e observações de espírito, dando provas que uma conversa pode ser promovida à condição de obra de arte), Fernando Morais traçou um painel sobre a realização desse seu mais recente livro.

Entre baforadas de charuto, recordou que tudo começou quando a Editora Planeta, após adquirir os direitos autorais de Na toca dos leões ― livro que relata a trajetória da agência de publicidade W/Brasil, uma das mais premiadas no mundo ―, propôs a aquisição daqueles referentes a sua próxima obra. Teria que ser, entretanto, tema de interesse além das fronteiras brasileiras. Nosso autor imaginou a biografia de Hugo Chávez. Logo, porém, soube que Bob Fernandes, também jornalista, já trabalhava sobre o assunto. Deram-lhe a idéia de escrever sobre a televisiva Xuxa, que não o entusiasmou. Veio então a sugestão de trabalhar em cima da vida de Paulo Coelho. A curiosidade sobre a pessoa subjacente ao autor mais traduzido do que o próprio Shakespeare despertou o apetite de Fernando.

Por solicitação de Morais, a Planeta escreveu ao candidato a biografado que surpreendentemente deu sinal verde para o projeto, desde que assinado por Fernando Morais. Dando início ao trabalho, Morais agendou as entrevistas com Coelho. Como condição prévia, alertou desde logo que o biografado só teria acesso ao conteúdo da biografia quando de sua publicação. Paulo Coelho concordou com a condição e marcou um encontro com seu biógrafo na Europa. Para espanto deste último, o peregrino de Compostela, hoje, além de católico praticante, um homem de uns trezentos milhões de euros, o esperava no aeroporto sem segurança, secretária, assessor ou motorista. Vestia-se, na opinião de Morais, como um padre à paisana: todo de preto, camisa, um par de calças simples, botinas de lona grossa. Nas mãos, a alça de uma prosaica mala de rodinhas. Também preta.

Fernando Morais planejara ver seu homem em ação junto ao público; por isso, na primeira parte do programa, acompanhou-o ao Oriente Médio e à Europa Central, onde na época Paulo lançava O Zahir. Em seguida, seguiu-o para observá-lo junto a seus pares, na entrega de um prêmio em Hamburgo, Alemanha, e no banquete de gala em sua homenagem, promovido pela Editora Flammarion, para comemorar sua contratação, no Chalet des Iles, restaurante requintado no Bois de Boulogne, em Paris. Por último, autor e personagem passaram juntos mais ou menos duas semanas na casa que este último mantém na cidade medieval de Saint Martin, no sul da França, próxima à fronteira da Espanha. Foram quinze dias inteiros de conversas gravadas, da manha à noite.

Ao término dessa temporada, Paulo confessou que havia feito o que sempre evitara na vida: psicanálise. Falar com tanta insistência sobre seu passado, equivaleu a um processo psicanalítico.

As gravações, depois de transcritas por uma secretária, foram lidas pelo autor que, de volta ao Brasil, passou a entrevistar todos aqueles nelas mencionados. Foram realizadas bem mais de 100 entrevistas. Uma vez que o núcleo da vida de Paulo Coelho encontrava-se no Rio de Janeiro, Fernando Morais mudou-se de São Paulo para essa cidade, por oito meses. Ele invocou a lição dada por Gabriel García Márquez, durante um dos cursos ministrados na Escola Internacional de Cinema, em Cuba: se é necessário descrever a porta de um hotelzinho em Paris, saiba quantos degraus tem a escada que vem depois dela, não importa se essa informação, no final, vai aparecer ou não. Nessa linha, por exemplo, subiu a pé os nove andares da casa de saúde onde Paulo Coelho fora um dia internado e tratado com eletrochoques, só para conferir a vista que o interno teria visto um dia: a baía de Guanabara, paraíso visto do inferno.

Por volta de 2006, Morais voltou mais uma vez à Europa para se encontrar com Coelho, que se preparava para repetir o caminho de Santiago de Compostela, vinte anos depois daquela sua primeira vez, fonte de inspiração para a escrita de O diário de um mago. Nessas alturas, Fernando já tinha aproximadamente 150 páginas escritas. Nem suspeitava que a releitura de um documento jurídico, igual em suas formalidade a tantos outros do gênero, iria colocar seu trabalho de pernas para o ar.

Relendo a cópia que lhe fora entregue do testamento de Paulo Coelho, prestou atenção em duas linhas que antes lhe haviam escapado. Tratavam-se das instruções acerca de certo baú, que devia ser incinerado fechado depois de sua morte. Morais, por telefone, perguntou o que tinha dentro dele, trancafiado a dois cadeados. A resposta veio evasiva: coisas de infância, reminiscências sem importância. Coelho aconselhou que o autor continuasse seu trabalho e não perdesse tempo, garantindo que nada seria acrescido com o conhecimento do conteúdo do baú. Depois de muita insistência ― e as negativas de seu dono contradiziam a falta de importância daquilo que ali era guardado ―, Paulo Coelho fez uma aposta com seu biógrafo: se ele descobrisse o nome do major que o interrogou no quartel em que esteve detido, em Ponta Grossa, em agosto de 1969, ele daria as chaves do baú.

Esquecendo-se de que Fernando Morais, antes de escritor e biógrafo, tinha sido um premiado repórter, Paulo Coelho o subestimou. Em menos de uma semana, com uma única pista ― o major tinha uma obturação de ouro em um dos dentes centrais ― e o auxílio de almanaques do Exército, meia dúzia de telefonemas, uma confirmação feita pelo relatório publicado sob o título "Tortura nunca mais", o major fora identificado, entrevistado e fotografado. Paulo Coelho cumpriu sua parte, dando ordens ao banco em cujo cofre guardara o par de chaves do baú no sentido de liberá-las a Fernando.

O conteúdo obrigou o autor a reconsiderar o trabalho alinhavado até então. O baú ― que era uma peça grande, daqueles antigos baús-armários, usados em viagens transatlânticas ― guardava volumes e mais volumes do diário de Paulo Coelho, escrito dos 10 aos 50 anos. Algumas páginas eram práticas, como aquelas em que o letrista e parceiro de Raul Seixas, lá pelos fins de 1960 e início de 1970, contabilizara seus ganhos quando do lançamento das gravações da dupla (uma delas rendera sete discos de ouro).

Outras eram recheadas de som e fúria, evidenciando a catábase espiritual de seu dono, que incluiu práticas de ocultismo, satanismo, sacrifício de animais e indução de uma namorada ao suicídio. Havia relatos sobre sexo pouco ortodoxo, drogas, tudo embebido em um caldo de angústias desmedidas. Contudo, diante desse conjunto, o que se destacou aos olhos de Fernando foi a determinação de Paulo em seguir aquilo que prega, quando insiste na perseverança na busca da lenda pessoal de cada um (termo que pegou emprestado do místico católico São João da Cruz): "Uma coisa é a gente ouvir que Júlia Kubitschek, mãe de Juscelino, repetia que seu filho seria presidente da República; outra coisa é ler alguém teimar em seu diário, aos 10, 11, 12 anos, que será um escritor lido em todo mundo".

No fim de sua infância, Paulo ― que era aluno do tradicional colégio jesuíta Santo Inácio, no Rio de Janeiro ― ganhou um concurso de contos e uma caneta dourada como prêmio. Ao chegar a casa, anunciou feliz para a mãe que seria escritor. Após uma tunda, recebeu como resposta que entre os 60 milhões de brasileiros da época havia um só Jorge Amado. Por isso, queria o filho engenheiro. Paulo Coelho não chegou a tanto, mas teve sucesso, ganhou dinheiro como letrista e como executivo de gravadora, nutrindo, ainda que de modo subcutâneo, seu grande sonho de ser um escritor reconhecido.

Frente a esse novo cenário, Fernando Morais sentiu-se cindido pela dúvida: incluiria esse material no livro, por um lado, sendo fiel aos fatos, mas por outro, arriscando romper a confiança daquele que passara a apreciar como pessoa? Outra hipótese seria omitir aqueles pontos em que a exposição de Paulo Coelho poderia ser excessiva. Não seria isso, contudo, uma censura? Negar aos leitores a verdade que havia emergido do baú, cujas chaves o próprio Paulo havia lhe entregado? Fernando Morais escolheu por não esconder nada.

O que o biografado pensará dessa biografia depois de lê-la? O autor ainda não sabe, uma vez que, na sexta-feira, dia 30 de maio, quando recebeu da editora os dois primeiros exemplares de O Mago, encaminhou um deles para seu personagem, em Saint Martin. Na tarde desse último domingo, a partir das três horas da tarde, Morais passou a autografar os muitos volumes que haviam chegado ao meio-dia em São Francisco Xavier. Talvez naquele momento, Paulo Coelho tivesse começado a ler o livro do qual é figura central.

Algumas coisas Fernando Morais têm como certas: no final de uma biografia, o biógrafo sabe mais da vida do biografado do que o próprio biografado, porque tem conhecimento dos acontecimentos sob todos os ângulos, uma vez que pesquisou a visão dos outros sobre o sujeito. Além disso, tem certeza que não escreverá outra biografia sobre pessoa viva. Doravante, apenas sobre mortos, de preferência há muito tempo. Durante o processo de redação, pensou várias vezes em desistir, achando que a tarefa estava além de suas forças, engordou dez quilos, ficou de barba branca e hipertenso. Citando a escritora Rachel de Queiroz, arrematou com o alerta de que escrever não é bom, bom é ter escrito.

Também é certo que o que importa é o público. Ele não teme a crítica, pois se lembra de que Nelson Rodrigues dizia que a bactéria da crítica não vai ao teatro. Parafraseando, a mesma bactéria não compra livro. Ele considera sua literatura mais para o populista Ademar de Barros do que para Fernando Henrique Cardoso: adora tomar metrô e ver gente lendo seus livros.

Debates abertos, formou-se uma fila longa para a formulação de perguntas, muitas e variadas. O que o expositor prefere: o período da pesquisa ou da escrita? Quando o biógrafo sabe que pode parar com a primeira e passar para a segunda? O fato de ser um homem de letras facilitou o diálogo com Paulo Coelho? Qual das biografias que escreveu está mais cheia de História?

O diálogo durou por mais uma hora e renderia um calhamaço de notas. A presente notícia, porém, tem que cessar por aqui. Na trilha de suas obras anteriores, principalmente das biografias que assinou no passado ― aliás, gênero que Fernando Morais relançou no Brasil ― seu O Mago será um sucesso. Pelos aplausos e comentários do público ao fim da causerie competente do autor, não é preciso de magia para se prever isso.

Nota do Editor
Eugenia Zerbini, vencedora do prêmio SESC Literatura 2004, com seu romance de estréia, As netas da Ema. Atualmente, escreve A mãe dos brasileiros, biografia romanceada da imperatriz Teresa Cristina, mulher de d. Pedro II.

Eugenia Zerbini
5/6/2008 às 11h54

 

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