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Sexta-feira, 25/7/2008
Não vamos falar da dor
Adriana Baggio

Antonino Mata é um imigrante cabo-verdiano que vive na região de Valmares, ao sul de Portugal. O antigo país colonizador, às vésperas do século XXI, ainda se divide entre a modernidade européia e as heranças de antigos preconceitos e tradições. O viúvo moço, assim como os outros 18 integrantes da sua família, vive na antiga fábrica de conservas da família Leandro. O arrendamento da propriedade permitiu aos Mata trocarem o bairro pobre dos negros imigrantes por um local mais nobre, onde desfrutam o luxo máximo da água corrente e abundante saindo das torneiras. Antonino, um dos filhos da líder do clã, Felícia Mata, movimenta gruas em uma grande obra e, apesar do perigo, gosta quando o vento assobia lá em cima.

Um perigo quiçá tão grande quanto a relação que Antonino estabelece com Milene Leandro. Tudo começa quando Regina, a avó da moça, foge de uma ambulância e decide ir morrer às portas da antiga fábrica. Milene, a única a permanecer na cidade durante um grande feriado de verão, enterra a avó sozinha e tenta seguir os passos dos seus últimos momentos de vida. Na tentativa de desvendar esse mistério, conhece Antonino e os Mata e com eles estabelece uma relação muito mais calorosa e autêntica do que a que tem com sua família.

Mesmo a edição brasileira de O vento assobiando nas gruas (Record, 2008, 496 págs.), da escritora portuguesa Lídia Jorge, mantém o idioma original. Isso e mais a forma sutil com que é escrito faz o leitor demorar um pouco a perceber as peculiaridades da personalidade de Milene. Não sabemos se a fragilidade e confusão mostradas nas páginas iniciais são fruto do choque pela morte da avó, do peso da responsabilidade de organizar seu enterro sozinha, da tristeza de perder alguém tão querido. Ou se nos confundimos porque, apesar de contemporânea, a história indica traços de um Portugal ainda atrasado em relação a outros países europeus.

Como Lídia Jorge não revela nada explicitamente, só no decorrer do livro vamos percebendo que Milene é diferente. Sua simplicidade de origem biológica encontra eco na simplicidade cultural dos Mata. O instinto natural da moça conversa com o conhecimento e a sabedoria de vida que a família cabo-verdiana traz consigo há gerações. E quando o instinto de Milene a leva a se apaixonar por Antonino, o aprendizado histórico dos Mata os faz intuir os problemas que a ligação entre um negro pobre e uma branca rica podem representar neste Portugal ainda arcaico.

Verão, outono, inverno, primavera. Enquanto a natureza renasce, algo se perde. As estações se sucedem e o clima, assim como a geografia, a descrição das estradas, das roupas, das casas, servem não só de pano de fundo mas de contraponto para os acontecimentos que se dão entre essas duas famílias. Por isso, Lídia Jorge não economiza ao nos apresentar as dunas, o nevoeiro, o brilho infernal dos casebres de lata ao sol quente de verão, a chuva, as saias curtas de uma Milene com 30 anos de idade e jeito de menina.

Ao longo de quase 500 páginas, demoramos para entender exatamente o que está acontecendo, apesar da apreensão que vamos sentindo. Porque os crimes cometidos neste livro também não são fáceis de serem compreendidos, ou de serem digeridos. Sábia é Milene, que com sua maneira própria de ver e viver as complexidades do mundo, diz sempre a Antonino: "não vamos falar da dor".

Adriana Baggio
25/7/2008 às 22h02

 

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