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Segunda-feira, 25/8/2008
La même chose
Julio Daio Borges

Ele não sabia, mas eu chegava na aula virada. Não dormia, e não era vagabundagem. Vinha do trabalho. Saía por volta das seis da manhã, chegava em casa, tomava uma xícara de café preto bem forte, e ia tomar o ônibus para a aula. Chegava na faculdade lá pelas sete, não tinha uma viva alma por ali. Eu ia direto para o segundo andar, entrava na sala de aula improvisada, e ele estava ali. Muito raro ele não chegar primeiro.

Trazia uma maleta cheia de livros, quase mais peso do que era aconselhável carregar. Ele sofrera um acidente de moto uma vez, e ficara com uma seqüela num braço. Não conseguia estendê-lo completamente, mas não abria mão dos calhamaços de livros. Eu tinha a maior admiração do mundo por ele. Ainda tenho.

Eu chegava ali, sem dormir, pronta para uma manhã inerte. Pronta para ficar muda. Pronta para apenas deixar a carcaça funcionar e desligar meu cérebro de tudo. Do mundo. Eu passava as madrugadas inteiras operando como uma peça de engrenagem. Por que ali havia de ser diferente?

Mas havia ele. E eu era a primeira da turma a chegar, mas aquilo me envergonhava, porque eu não era uma aluna competente. Aplicada. De talento. Eu era igual ou pior que os demais. Descrente. Apática. Eu não iria me sobressair ali, mas isso não fazia diferença para ele. Ele me recebia com sorrisos às sete e quinze da manhã e dizia "vem aqui que eu quero te mostrar uma coisa". E espalhava páginas de jornal em cima da mesa, livros, e falava e gesticulava e defendia seus pontos de vista como a coisa mais fundamental do mundo. Como se não houvesse aquele desânimo a pairar sobre todos e inclusive sobre ele. Só que a gente se rendia, e ele não. Ele nunca. Ficava a brigar sozinho por aquilo de que não conseguia nos persuadir.

Eu não consigo expressar o quão feliz eu me sentia ao sentar ali e ficar ouvindo aquelas coisas. Aqueles papos, aquelas queixas que ele tinha do mundo e de nós. Eu seria capaz de ficar por horas ouvindo, anotando, viajando naquelas suas histórias. Por vezes, dava vontade de ir atrás do velho e perguntar se poderia segui-lo. Se ele poderia me ensinar a ser como ele. Mas acho que eu não era e, triste, me conformei.

Enfim, estou pronta para voltar para a boca da noite. Para perder de vista a luz do sol. Para esquecer por mais umas noites que o dia existe. Mas, na saída, não poderei voltar à sala de aula e ouvi-lo mais um pouco. Terei que adentrar outra sala, e admirar o silêncio.

Cláudia Flores, no seu blog, que linca pra nós.

Julio Daio Borges
25/8/2008 à 00h02

 

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