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Sexta-feira, 17/10/2008
Dias de cão em Santo André
Vicente Escudero

O final feliz do caso da garota mantida como refém, pelo ex-namorado, em Santo André, não acontecerá se a cobertura incessante e irresponsável de algumas redes de tevê não parar.

Manhã de ontem. Entre um pedaço de sanduíche de peru e um gole de suco tive o desgosto de assistir a uma entrevista com o seqüestrador chamado "Lindemberg". Todos pararam. Eu, a apresentadora e os convidados do programa. O seqüestrador se esquiva das respostas fáceis às perguntas da jornalista, a apresentadora expressa seu desamparo com a situação e a ausência de uma solução fácil. Não sinto compaixão pelo fracasso da jornalista. A lembrança de uma ridícula tatuagem na nuca de uma atriz, onde se lê "Livrai-nos de todo o mal" vem à minha mente e sugere à apresentadora do programa: "Por que você não repete o versículo da tatuagem, reclama da violência atual e não volta para a programação normal? Afinal, não é assim que as coisas se resolvem na televisão, com um clichê?".

O rapaz ainda está lá, com a arma apontada contra todos, sem saber dizer o porquê do seqüestro. Outro drama transformado em pauta. Segundo a polícia militar, o seqüestrador pretendia se entregar até ser entrevistado, pelo telefone, por uma rede de tevê. Antes, não tinha nada a perder, agora, ele deve se sentir orgulhoso pela cobertura do caso. Em 1932, o filho de um herói da aviação norte-americana, Charles A. Lindbergh, primeiro piloto em um vôo transatlântico sem escalas, foi seqüestrado. O caso ocupou a pauta da imprensa de lá até a criança ser encontrada morta. Em 2008, nosso "Lindemberg" resolveu se vingar e seqüestrar a ex-namorada.

Acabo de descobrir que o seqüestrador fez mais uma refém. Fotos e vídeos mostrando ela prensada contra o vidro da janela do apartamento onde todos estão confinados circulam sem parar pelos meios de comunicação. Nunca as redes de tevê aberta transmitiram Um dia de cão, filme em que Al Pacino interpreta um ladrão de banco cercado pela polícia e a imprensa durante um assalto. Embora ninguém tenha saído lesionado do filme, seus cento e vinte quatro minutos de duração não trariam o mesmo retorno financeiro que as cinqüenta e seis horas de seqüestro perpetradas pelo nosso "Lindemberg". O filme, acredito, também é violento demais para o público brasileiro. Os atos de "Lindemberg", não.

Nosso "Lindemberg" está cansado. Em um ambiente fechado, onde a temperatura é medida pela repercussão de cada um de seus atos, o calor das matérias jornalísticas aumenta sua esperança vazia. Ele não sabe o que quer, mas a tevê dá a ele cada vez mais.

Depois da atabalhoada entrevista, só resta aguardar que um arroubo de bom senso baixe sobre o seqüestrador, dizendo: "Ei, Lindemberg, esqueça isso, vá para casa, descansar". Ou, quem sabe, numa hipótese remota, que as redes de tevê não contribuam para mais um vídeo macabro no YouTube.

Vicente Escudero
17/10/2008 às 10h23

 

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