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Sábado, 25/10/2008
Biografias literárias
Débora Costa e Silva

Você é daquele tipo de leitor que fica se questionando ao longo da leitura de um livro sobre a influência da vida do autor em sua escrita e na história em que conta? Claro que existe uma relação entre as duas coisas, mas nem sempre ela é perceptível ou proposital. Em seu seminário no curso de Criação Literária na Academia Internacional de Cinema (AIC), o poeta, ensaísta e tradutor Rodrigo Petrônio, autor de livros como Pedra de Luz, apresentou aos alunos alguns casos em que a biografia do escritor influenciou formas de linguagem e histórias clássicas da literatura. Na entrevista que segue abaixo, Petrônio lançou um olhar mais analítico sobre essa relação entre ficção e realidade.

Como preparou este seminário?

Na verdade, fui desenvolvendo esse tema de modo muito pessoal, tateando, tangenciando, vendo o que realmente me interessava nele. Os grandes biógrafos acabam conseguindo reintegrar vida e obra. Mas às vezes eles carecem de profundidade analítica ou tendem a se ocupar mais dos dados biográficos do que da significação simbólica que esses dados tenham para a obra do autor tratado. Este conceito de biografia que desenvolvo se expande para todos os gêneros. Trata-se do "eu" entendido como matriz mítica de produção literária, em outras palavras, como matéria-prima da ficção. Dessa maneira, como intersecção dos planos do real e do imaginário, da vida e da ficção, ele transcende a concepção estrita de gênero e acaba desaguando em todas as modalidades literárias, de acordo com o uso consciente desses recursos pelos autores.

Gostaria de entender melhor como é essa abordagem do "eu"; o quanto (e o que) de autobiográfico há nas obras e de que forma os fatos reais, vividos pelos autores, são inseridos nos escritos?

A princípio, a relação entre biografia e literatura nos soa como um aparente truísmo, na medida em que sempre há algum componente pessoal naquilo que se escreve. Entretanto, há uma diferença entre um uso ocasional e um uso programático. No primeiro caso, temos uma espontaneidade na criação e um mero acidente entre o discurso ficção e os fatos empíricos. No segundo, essa relação é motivada. Não digo que haja uma hipotética e equivocada intenção do autor. Vou mais além. Há estruturas narrativas biográficas implicadas na própria obra. Nesse caso, os termos de vida e obra tornam-se conversíveis uns nos outros e complementares. Por outro lado, creio que estejamos um pouco viciados em um tipo de referencial moderno. Também a própria estrutura poética é organizada por meio de regras retóricas e poéticas que são impessoais, de domínio coletivo. Há uma primazia da matéria de que se trata, considerada mais importante do que a expressão ou a vida íntima do autor.

Como se dá esse processo com autores como Cervantes, Dante, Kafka, Proust, Joyce, citados nas aulas?

A partir do século XV essa relação começa a se tornar complexa e ocorre uma guinada substanciosa. Começamos a ter a presença do "eu" fático do autor, estruturando a experiência literária e demarcada com mais ênfase a partir de A divina comédia, e, sobretudo, a partir de Montaigne. Com os ensaios, esse "eu" passa a ocupar o papel de protagonista e de centro irradiador do discurso literário. Com Montaigne temos, na literatura, uma espécie de inauguração de um "eu" que se pretende genuíno, a um só tempo discursivo e empírico, literário e biográfico, bem como o jogo entre essas duas dimensões, ou seja, entre a poesia e a história, entre a realidade e forma ficta. O Dom Quixote não é nada mais do que uma grande bufonaria em torno desse deslocamento original, no qual a literatura ganha espessura humana, fisionômica e biográfica, mas sempre afirmando seu estatuto de "ficção".

Você citou em uma das aulas algumas formas de abordagem: testamento, testemunho, confissão, expressão e auto-retrato. Há mais alguma? Qual a principal característica de cada uma delas? É possível relacionar algum desses autores acima com alguma dessas "classificações"?

Todos esses itens que você menciona integram aquilo que podemos chamar de biografemas, marcas da vida programaticamente usadas na obra. É claro que não é possível captar de maneira transparente essa relação. Afinal, nem nós mesmos detemos a totalidade de relações possíveis e tangíveis de nossas próprias vidas. Mas a possibilidade literária de deixar um relato mais ou menos próximo de uma vivência pode ser aferida, de acordo com a própria organização da linguagem literária. Com Dante temos uma tal intersecção entre poesia e história, entre tempo e eternidade, entre particular e geral, entre biografia e destino humano coletivo, entre plano natural e plano sobrenatural, que ele permanece até hoje insuperável, um modelo sem parâmetro em nenhuma outra época ou literatura. Cervantes também, na dimensão da prosa, mas em uma dimensão menos profunda de integração de vida e de obra do que Dante. Por outro lado, Kafka produz um fenômeno curioso, que eu chamo de antibiografia, terceiro termo de um ternário, cujos correlatos seriam a biografia e a autobiografia propriamente ditas. Kafka inaugura uma negação sistemática do sujeito da escrita e do próprio princípio de singularização dos personagens. Seus personagens são sempre categorias genéricas vazias, sem enraizamento na experiência, carentes de qualquer confronto com as singularidades circundantes. Falando em termos filosóficos, a obra de Kafka se desdobra em um movimento puramente horizontal, de gêneros a gêneros, nunca desce às espécies e aos indivíduos. Procedimento rigorosamente oposto ao de Proust, cuja vida e obra atingem uma unidade sinfônica tão inextricável que podemos considerar impossível a divisão genérica de Em busca do tempo perdido, em termos de ficção e autobiografia. James Joyce faz uma mise-en-scène de história, literatura e biografia. Sabemos que todos os seus livros têm alter egos e máscaras, como Stephen Dedalus, Leopold Bloom, Shem, entre outros. Não é à toa que Joyce é um dos maiores devotos de Dante no século XX.

Quando você escreve, como você se coloca em seus escritos? Como está o seu "eu" inserido em seus poemas?

Gosto muito da poesia lírica, que tende a irradiar a sua voz e desdobrá-la em diversas metamorfoses. Tenho alguns trabalhos em prosa, mas nos quais esses aspectos biográficos entram de forma muito sub-reptícia, indireta. Gosto de explorar mais o imaginário do que os dados empíricos. Mas ando amadurecendo alguns escritos em prosa e tenho também começado a usar, conscientemente, esses recursos biográficos.

Para ir além
Criação Literária na AIC

Débora Costa e Silva
25/10/2008 às 21h34

 

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