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Segunda-feira, 17/5/2010
A Casa de Vital Brazil de luto
Luis Eduardo Matta

Foi com profunda consternação que acompanhamos as notícias da destruição de um dos mais relevantes patrimônios científicos do país e da humanidade, a maior e a mais antiga coleção no mundo em seu gênero. Especialistas afirmam que não há em qualquer outro lugar do planeta uma coleção tão expressiva em torno de uma única espécie animal que se compare a esta que desapareceu.

Vital Brazil começou a formar esta coleção há 114 anos atrás, em 1896, ainda em Botucatu, concomitante ao início de seus trabalhos sobre o ofidismo. Ele imaginou ser possível, pesquisou, planejou e se empenhou incondicionalmente para lançar as bases sólidas de uma grande obra que pudesse servir para pesquisa e para os estudos de gerações e gerações futuras. Seu interesse pelo tema já vinha desde os tempos da faculdade de medicina no Rio de Janeiro, mas foi a partir da indignação pela morte de uma jovem camponesa mordida por serpente que a causa o tomou por completo. Este episódio representou a gota d'água que o fez transformar a sua casa em um rudimentar laboratório experimental, três anos antes de dar início ao Instituto Butantan, em dezembro de 1899. Somente em 1907, com a entrada de João Florêncio Gomes no instituto, seu segundo colaborador ― até então só havia um único assistente para com ele dar conta das diversas atividades e tarefas no IB ―, que Vital Brazil entregou a responsabilidade desta coleção para que este, Dr. João Florêncio, sob sua orientação, pudesse melhor organizá-la. Ao passar dos anos expandiram-se as pesquisas, criou-se a coleção de aracnídeos e de outros importantes acervos de animais peçonhentos com milhares de exemplares para o fomento de estudos e para o avanço científico em diferentes campos do conhecimento.

Ao longo de décadas inúmeros pesquisadores passaram por ali e contribuíram determinantemente para que a coleção herpetológica se tornasse a referência maior que foi até a manhã deste sábado último, dia 15 de maio de 2010. Não por acaso levava o nome do Dr. Alphonse Richard Hoge, responsável por progredir significativamente em sua formação e organização a partir dos anos 40. Nos últimos tempos esta coleção esteve sob a diligente responsabilidade de herpetólogos como Giuseppe Puerto e Francisco Franco, que como outros tantos pesquisadores que ali se formaram e atuaram, tanto do passado, como do presente, muito fizeram pelo engrandecimento deste patrimônio científico.

A família de Vital Brazil reconhece com profunda e sincera gratidão o esforço de todos estes incontáveis cientistas e empenha total solidariedade àqueles que, nos últimos anos, de fato, trabalharam incansavelmente para manter e preservar com todo o zelo este patrimônio científico ora destruído, como o Dr. Francisco Franco, o Kiko, atual curador da coleção. Há tempos que este pesquisador lutava bravamente pela reforma das instalações que abrigava este acervo.

Não se pode dar valor àquilo que não se conhece. Basta se observar a notória preocupação da imprensa em divulgar que a produção de vacinas não foi atingida por este trágico incêndio. Fábricas podem-se recuperar de quaisquer tragédias, patrimônios como este que se foi, não, nunca.

Perguntamo-nos sobre as condições dos outros acervos de documentação da maior relevância histórica que estão sob os cuidados do Instituto Butantan. Perguntamo-nos as quantas andam os indiciamentos dos responsáveis e as investigações sobre o desfalque de cerca de 150 milhões de reais da Fundação Butantan que veio à tona em setembro último. Há de se averiguar com determinação a maneira com que a instituição vem tratando de sua História, há de se ler com atenção o que vem sendo escrito e divulgado sobre este Patrimônio Nacional nas últimas duas décadas, sobretudo, desde os anos de 1980. Este incidente também há de representar o arrombar das portas de um silêncio notoriamente intencional.

Lamentavelmente, por mais triste e silenciador que seja este momento, é impossível conter a indignação diante do descaso e do descuido da atual administração do Butantan em relação ao patrimônio histórico-científico que lhes foi entregue para gerir.

Fez-se definitivamente o vazio inquietante. Arderam vitoriosas as chamas das vaidades e das mesquinharias daqueles que tiveram até pouco e ainda têm o poder de decisão no Butantan, mais uma vez rejubilou-se a lógica reducionista da fábrica de soros e vacinas contra a qual Vital Brazil tanto lutou e resistiu.

(...) permiti, senhores, que o velho fundador desta casa [Butantan], que assistiu aos seus primeiros delineamentos, que viu o lançamento de suas bases fundamentais, que testemunhou uma série enorme de lutas, triunfos e decepções até chegar ao ponto em que ora se encontra, que sentiu alegrias e tristezas, que aqui viveu durante vinte anos, tendo aqui passado os melhores dias de sua mocidade, que viu primeiro germinar, na sua imaginação, toda essa obra que pouco a pouco se transformou em realidade, desde o majestoso e empolgante bosque de araucárias e eucaliptos, que emoldura as construções, até os mínimos e insignificantes detalhes; permiti senhores, que esse idealista impenitente, ora se vos apresente cheio de entusiasmo e de fé, para vos afirmar que, ainda hoje, alimenta o mesmo sonho que em outros tempos afagou, de fazer desta Instituição, não uma simples fábrica de soros e vacinas, mas um centro de pesquisas e estudos de utilidade para este glorioso Estado e de grandes benefícios para o país e a humanidade.
(Vital Brazil, em discurso ao retornar à direção do Butantan, em 1924.)

Em nome da família de Vital Brazil,
Érico Vital Brazil
Presidente da Casa de Vital Brazil

Luis Eduardo Matta
17/5/2010 às 18h05

 

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