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Quinta-feira, 17/3/2005
Carta ao pai morto
Julio Daio Borges

Pai,

amanhã, dia 22 de agosto, é seu aniversário. E você está morto. Pela primeira vez você aniversaria, estando morto. Isto quer dizer: você, em verdade, não aniversaria, você está além do tempo, fora dele, imerso na eternidade. Você, que já morreu, isentou-se do tempo, não aniversaria mais, nem morre mais. Você está maduro, cumprido, completo, além da sorte, do rumor do mundo. Eu me lembro de você, com carinho, ternura e tristeza. Eu, ainda tecido de tempo, eu que morro a cada dia, me lembro de você e de seu aniversário. Você, nascendo, inaugurou a possibilidade de que eu nascesse. Você, nascido, me precedeu, e agora sucedo a você, e me lembro de você, por você, em seu nome. É possível que você precise desta minha lembrança — pequeno ramo de flores que ofereço a você, por você e para você, substituto que sou de você, cuja chama viva continua a viver em mim: você está no reino da imemória, e o seu calor passou para as minhas mãos, para que eu me lembre dele, e o honre. Precedido por você, sucedendo você, plantei, por minha vez, as sementes das árvores que, já nascidas, me sucedem e me sobreviverão. Quero honrar sua memória — e sua vida. Quero que o seu aniversário seja, mais uma vez, o dia do compromisso meu com você: de que eu assuma a minha vida e a minha liberdade. De que eu seja fiel ao que de melhor for vivo em você. Assumindo minha vida e minha liberdade, sou fiel a você, à chama que você me legou, à vida que tenho e que, sem você, seria impensável. Prossigo, por mim, por você, por todos os que nos antecederam, por meus filhos e pelos que me sucederem, por todos os homens, a minha caminhada. Que ela seja corajosa, bondosa, firme. Que eu tenha as coragens que faltaram a você, os gestos libertários que seus braços não puderam esboçar. Que você se sinta mais livre e mais vivo, em mim. Que eu leve, mais longe, a vida que você me legou. Que eu salve você, dentro de mim, que eu esteja, em mim, bem vivo para que você — que eu continuo — fique bem vivo, livre, humano e profundo, em mim, por mim, por você, por todos.

Te amo, pai.

Hélio Pellegrino, em homenagem a Braz Pellegrino, no livro que Antonia Pellegrino organizou.

Julio Daio Borges
17/3/2005 às 09h13

 

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