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Domingo, 15/1/2012
'Jornalismo é paixão, é vício'
Duanne Ribeiro

Na primeira Bravo! do ano, o jornalista João Gabriel de Lima anunciou que, "engajado num novo desafio", deixa o cargo de diretor de redação da revista, no qual estava desde 2007. "Passei em Bravo! cinco anos esplêndidos, entre os melhores de minha trajetória (ia dizer 'carreira', mas acho que em relação ao jornalismo são mais apropriadas as palavras 'paixão' ou, talvez, 'vício')".

Acompanhei esse percurso como leitor - minha assinatura começou em janeiro de 2008 - e recorto aqui os editoriais de João Gabriel no período, nos quais se pode ler sua visão sobre o que é o bom jornalismo cultural, o que faz a qualidade de um texto - jornalístico ou não - e a dificuldade de construir uma reportagem, entre outros temas.

Lutar com Palavras
"Escrever sobre música não é difícil", costuma dizer Alex Ross, crítico da revista norte-americana The New Yorker e talvez o melhor da imprensa em língua inglesa na sua especialidade - a música erudita. Em resenha de uma coletânea de artigos dele, a publicação britânica The Economist comentou a frase: "Ross é modesto. Seus textos são tão bons de ler que certamente foi um inferno escrevê-los".

Numa sentença, o redator da The Economist resumiu a arte do jornalismo. No Brasil, a máxima é especialmente válida para a área cultural. Em nosso país, uma rançosa tradição beletrista reza que textos sobre o mundo das artes devem ser pomposos, pedantes, retorcidos - numa palavra, ininteligíveis (se fossem duas, a segunda seria "cafona"). Já há alguns anos, Bravo! luta para contrariar esse clichê. Escrever difícil é fácil. Escrever com clareza pode ser um "inferno", como diz a The Economist - mas lutamos com as palavras diariamente com o intuito de, sem perda da qualidade do conteúdo, fazer uma revista útil e acessível a todos os interessados. (Janeiro/2011)

Narrativa Apurada e Saborosa
Certa vez, o escritor francês Marcel Proust (1871-1922) foi convidado para uma recepção em Paris. Lá, entabulou conversa com um diplomata. Perguntou o que ele fazia. "Represento nosso país", disse o diplomata. "Não, não foi isso que perguntei", retorquiu o autor de Em Busca do Tempo Perdido. "Interessa-me saber a que horas o senhor acorda, com que carro vai à sua repartição, como ela é - móveis, tapetes, fotografias em cima da mesa - e as coisas concretas que faz a cada minuto do dia. Ou seja: os detalhes, os detalhes."

A anedota de Proust, que contém toda uma filosofia sobre a criação literária, é particularmente válida para o jornalismo. Hoje em dia, todo mundo sabe mais ou menos os fatos relevantes, e em tempo real, graças aos inúmeros sites noticiosos que proliferam na internet. Mais raras são as reportagens que esmiúçam os acontecimentos, dentro de uma narrativa bem apurada e saborosa. Ao longo dos anos, esse gênero recebeu o nome de "jornalismo literário". O estilo vem experimentando uma nova onda hoje, justamente por se contrapor à internet, complementando-a. (Junho/2010)

Texto de Imersão, Texto Autoral
Com a migração do noticiário mais imediato para a internet, vivemos um dos períodos mais fascinantes da história das revistas. Mais do que nunca, elas precisam mergulhar profundamente nos temas de que tratam, fazendo a diferença num mundo em que a informação é cada vez mais acessível. Mais do que isso. É importante que o repórter volte dessa imersão com novas ideias, expressas num texto criativo, com estilo próprio. Numa palavra: importa que o repórter seja um AUTOR.

(...) Para falar da ousadia do ator Wagner Moura em encarar o papel mais difícil do teatro - o Hamlet de William Shakespeare -, a repórter Marcella Franco (...), que já sabia de cor vários trechos da peça, leu ensaios sobre Hamlet, biografias de Shakespeare e vários textos do dramaturgo inglês. Viu e reviu as adaptações de Hamlet para o cinema. Baixou no Youtube cenas de interpretações raras e antológicas de Hamlet, como a do russo Innokenty Smoktunovsky. Conversou com atores que já viveram o papel, como Marco Ricca, e com especialistas como Barbara Heliodora. O astro principal da montagem, Wagner Moura, foi entrevistado durante nove horas. (Junho/2008)

Design claro e simples
Desenhar uma revista não se resume a escolher belas fotos e espalhá-las a esmo. O essencial é que as páginas, além de impecavelmente bonitas, expressem com eloquência as ideias contidas nos textos, chamando à leitura de forma irresistível. Com limpeza e elegância - um bom desenho de página, assim como um bom texto literário, busca a clareza e a simplicidade, e tem horror à afetação.

Parece fácil, mas não é. Para obter esse efeito, Thiago [Melo, diretor de arte de Bravo!] criou todo um processo. Ele exige que os designers de sua equipe se envolvam com o processo de produção das reportagens. Eles vão às pré-estréias de filmes com os críticos. Leem os livros resenhados na revista. Com os editores e os autores dos textos, discutem detalhadamente o que cada reportagem irá dizer - cada texto publicado em Bravo! é exaustivamente pensado e conversado. (Abril/2008)

Assuntos em perspectiva, temas provocantes
Cabe, aqui um parêntese sobre a palavra "relevante". Gerações passadas faziam uma separação muito clara entre o que era chamado de "cultura popular" e "cultura erudita". Na era da internet, um tempo de acesso amplo à produção artística, essa divisão não faz mais sentido. Usamos o Youtube, por exemplo, para conhecer o novo videoclipe de Lady Gaga e checar a última montagem de ópera no teatro Metropolitan, de Nova York - e ambos, dependendo de sua qualidade e repercussão cultural, podem ser igualmente relevantes.

Não basta, no entanto, listar o que acontece de importante. O leitor de Bravo! espera que a revista vá além, explicando, aprofundando, colocando os assuntos em perspectiva. Para ficar em dois exemplos: a vinda do grupo U2 serve de pretexto para uma discussão, proposta pela repórter Barbara Heckler, sobre a eficácia das ações sociais de ídolos da música pop. E o editor André Nigri, ao resenhar a biografia de Borges, se pergunta: afinal, até que ponto as paixões reprimidas de um escritor influenciam sua obra? Lançamentos relevantes colocam em circulação ideias provocantes. (Abril/2011)

Prazer de Pensar
"Pensar é um dos maiores prazeres da raça humana", dizia o Galileu Galilei da peça do dramaturgo alemão Bertold Brecht. O bom jornalismo cultural é aquele que proporciona esse prazer ao leitor, em doses generosas. (Janeiro/2008)

Duanne Ribeiro
15/1/2012 às 16h29

 

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