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Quarta-feira, 20/4/2005
Metamorfose, mortemesafo
Julio Daio Borges

Nos seus últimos anos de vida, Bertolt Brecht escreveu ao lado de uma janela que dava para o pequeno cemitério onde logo seria enterrado. Era uma sala grande, essa onde ele escrevia, e estavam espalhadas nela nada menos do que oito mesas. Destaco duas. A que estava ao lado da janela que dava para o cemitério, e onde Brecht tinha sua máquina Royal DeLuxe. E outra, alta, encostada na parede, em que gostava de fazer correções, em pé. Nas outras seis devia atirar papéis, deixar textos inacabados, algum material de consulta, enfim, fico aqui inventando para completar o cenário. Brecht não gostava de ficar muito tempo sentado diante de uma mesa só, trabalhava andando, mudando de mesa, numa outra tinha uma Lettera 22, essa que todos os maiores de 50 anos um dia tivemos. Mas a mesa principal, se posso chamar assim, era a que ficava perto da janela e que dava para o seu túmulo. Bom, sendo mais preciso, seu futuro túmulo, pois mesmo com o interesse de Brecht por literatura fantástica, bom leitor de Poe, não quero que vejam nisso um enredo tenebroso, e menos ainda uma história mal-assombrada. Quando Brecht olhava pela janela não era ainda uma pedra com seu nome o que ele via, não era ainda sua última morada, como isso costuma ser chamado. Via, isso sim, o túmulo de Hegel, que já estava lá havia um bom tempo, de quem em breve ia ser colega de condomínio. Estou falando do Dorotheen-Städtischen Friedhof, o pequeno cemitério onde restam os ossos dos dois, onde ambos viram pó.

Enfim, descrevo essa sala, com essa janela e a mesa ao lado dela, para chamar a atenção para a morte de Brecht, anunciada por essa vizinhança. Bertolt Brecht escolheu para morar uma casa, um apartamento, no número 125 da Chausseestrasse, provavelmente porque era perto do seu local de trabalho, o Berliner Ensemble, a poucas quadras dali, umas cinco ou seis, a distância justa para uma breve caminhada arrumando as idéias a caminho dos ensaios. Não creio que tenha procurado uma casa do lado de um cemitério porque sim, não era essa viagem que ele queria encurtar, afinal sempre teria o barco do velho barbudo Caronte para levá-lo, não ia se preocupar com a distância. O cemitério foi o acaso que lhe colocou nas mãos, melhor, diante da vista. Mas quando arrumou seus móveis, seus livros, suas máscaras, seus teréns, escolheu para ser seu canto na casa, para ser o centro do seu equilíbrio, a janela que dava para o cemitério, a visão da morte. O poeta do homem novo e da nova sociedade não costuma ser visto através das lentes dessas metafísicas (...).

Brecht veio, enfim, passar os dois ou três últimos anos de vida ao lado do seu túmulo e o sentido oculto dessa escolha (dele ou do destino) é o enigma que nunca decifraremos completamente, mas em torno do qual circularemos cheios de hipóteses, visões, revelações, ahs e ohs.

Aderbal Freire-Filho, em introdução a Estudos sobre Teatro, de Bertolt Brecht (que, aliás, pronuncia-se "Bré-i-hhh-t", com "h" aspirado, o mesmo de hotel, em inglês; e não "Brés-te", como grande parte da nossa "intelequitualidade").

Julio Daio Borges
20/4/2005 às 17h24

 

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