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Quarta-feira, 20/3/2013
Convites à Filosofia
Yuri Vieira

CONVITES À FILOSOFIA

O último ataque de sabedoria
da bela doutora Chauí
me deixou perplexo! Um dia
num canteiro de Alexandria
a única flor que eu não colhi
passou horas e horas ali
explicando filosofia
a um cliente da casa... Lili,
se fazia chamar a guria.

No batente contraíra o mal
que não desgruda quando ataca
e a paixão do conceito. Polaca
(uma ex-noviça, por sinal),
escapara ao torrão natal
na valise de um industrial,
mas matara-o de morte macaca
e agora despachava-os de maca
rumo à enfermaria geral!

Sabia tudo de Epicuro,
o seu xodó. Falava bem,
punha qualquer um de pau duro
com as dissertações e o vaivém
das mãos sábias, no claro-escuro
à beira-leito... Jurar não juro,
mas, se não convertia a ninguém,
fascinava o varão maduro
e os mais inespertos também.

Clandestino e errante, eu sabia
que, sem Visto no baixo Egito,
se me pegassem estava frito:
dormia ali durante o dia,
hotel nem morto! O arranjo previa
apenas que o moço bonito
dormisse sozinho e, repito,
eu dormia a manhã toda, ouvia
Lili me explicar o infinito

e Epicuro lá para as duas;
cerca das quatro, quatro e meia,
devolvia o cascalho à bateia
e reganhava o ouro das ruas,
as semi-ninfas semi-nuas
ficavam para trás, a feia
das grandiosas semi-luas
e a estupenda Lili. Cantei-a
de mil maneiras, das mais cruas

às mais cruéis, das mais virís
às mais dúcteis, mas não houve jeito:
epicurava ao pé do leito,
mas de graça não dava! Fiz
o que pude, o malandro perfeito,
mas epicurista aprendiz
é mesmo um pedestre, e bem feito!
Ah, pudesse este meu país
resistir às nativas Lilis,

seus babados e baboseiras,
como a pérola de Alexandria
resistiu-me semanas inteiras!
Manual de filosofia
a noite toda dá em olheiras,
mas é mal incurável, mania
até mesmo de ex-futuras freiras
filosófico-epicureiras
como as há também, quem diria,

neste nosso agreste jardim.
Minha Santa Teresa, eu li
o manual da nossa Lili
de cabo a rabo! É verdade sim,
li tudinho, e ansioso torci
pela guria até ao fim...
Mas uma cena que nunca esqueci,
dentre as lufadas de jasmim
daquela mansão sem jardim

veio a mim como uma chibatada:
vi minha Lili de olhos belos,
de calcinha toda rendada
num florido patamar de escada
como a jovem do poema de Eliot
e sofri! Aquela madrugada
eu voltara mais cedo, os melros
começavam a cantar na estrada:
Lili desatara os cabelos,

largara Epicuro e, à janela,
chorava, chorava... A verdade
chegara muito perto dela,
com a imperdoável crueldade
das horas vazias, aquela
era a hora da verdade. Bela,
descabelada e sem vontade
de iludir-se, dava pena vê-la:
afinal esquecia a vaidade,

desmentia a reputação
de Diótima eslava e selvagem
e soluçava de pé no chão...
Levei comigo aquela imagem
anos a fio, desde então
sinto certa camaradagem
com todas as fêmeas que em vão
pensam que sabem o que não sabem.
Soube que morreu no Sudão

alguns anos depois. De frio.
Esfriara a pérola ardente,
murchara quando um livre docente
desmanchara-lhe fio por fio
a douta cabeleira insciente
aquela noite... Conheci-o,
um professoreco insolente
de Liceu: humilhou friamente
minha flor, e Epicuro, o vadio,

nem se importou, fez-lhe o favor
de abandoná-la nua e crua
à escolástica do inquisidor.
Se a nossa doutora não for
tão sensível, a sorte é sua,
talvez ainda possa dispor
da arte fria de um cliente-instrutor;
recomendo uma noite sem lua
em Alexandria: há uma rua
transversal entre o velho mar,
o Maryût e a Rodovia
dos Ingleses; nela há um solar
que todos conhecem, de dia
a casa é fácil de encontrar;
o tal professor não saía
de lá, com certeza há de estar.
Não ensina filosofia,
ensina as Lilis a acordar.


EM RETROSPECTO

Pobre pequena,
sofreu demais!
Com aquela cena
perdeu a paz,
não se viu mais
feliz, serena,
era só ais...
Já a Marxilena
é um monstro horrendo:
eu fico lendo
Tia Chauí
e me arrependo
do que senti
pela Lili!

Poemas extraídos do livro Os Sapos de Ontem, de Bruno Tolentino.

Yuri Vieira
20/3/2013 às 12h29

 

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