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Quarta-feira, 4/5/2005
Um réquiem (mais um)
Julio Daio Borges

O trampo ideal chegou ao fim com um telefonema. "Se soubesse que aquela seria a última, tinha caprichado", brinquei. "Você continua nos nossos planos", brincou mais ainda a voz do outro lado da linha. Com a polidez e a satisfação inatas aos portadores de notícias desagradáveis, um diretor alegou uma razão econômica qualquer para dizer que o jornal Correio Popular, de Campinas (SP), não vai mais reproduzir minha coluna semanal. Até esqueci que um dia ia acabar, de tanto que durou: quase cinco anos, de longe meu recorde em qualquer atividade remunerada. Por e-mail, enviava na segunda-feira o texto que seria impresso na edição seguinte. Todo dia 5, depositavam a devida merreca. Eis o segredo da longevidade, consultores.

Foi o responsável pelo caderno de cultura, Alexandre Matias, que me convidou. O atual coordenador do Trama Universitário (e cotadíssimo para ocupar uma das cadeiras do conselho da futura Agência Nacional de Incentivo ao Trabalho Autoral - Anita) achava interessante ter meia página por semana assinada pelo então editor-chefe da revista Showbizz. Ele confiava na minha bagagem cultural para levar entretenimento saudável ao rico interior paulista. E, principalmente, sabia que só eu estaria disposto a encarar o desafio pela merreca oferecida. Mas ignorava que terça-feira, o dia determinado para a coluna ser publicada, é o dia do escorpião. O que revestiu tudo de magia a partir de 16 de maio de 2000.

Pouco depois, ele saiu do jornal. Eu, que jamais visitara a cidade nem tinha visto um exemplar do diário e sequer minha coluna impressa, perdi o único contato com a redação campineira. O roteirista, chargista, escritor, videasta e-outras-profissões-que-não-exigem-diploma Zé Dassilva chegou a levantar a hipótese de que não existia coluna nenhuma. Sua suspeita era de que o material por mim remetido ia direto para o computador de um milionário bugrino que nutria uma platônica afeição pela minha prosa, pagando-me para não dividi-la com mais ninguém - em vez de sexo, uma espécie de brochada solitária. A suposição sustentar-se-ia, não fosse pela minha caixa de correspondência, entupida pelas assessorias de imprensa.

Foram 253 colunas inspiradas por uma tela em branco. Sentar diante do monitor para escrever sobre qualquer coisa, de preferência algo que não deixe tão escancarado o despreparo para a missão. Falava das coisas simples do Brasil, como ensinava o Gueto, e também de coisas que você nunca viu. Automonia total, tanto no conteúdo quanto na forma. Valia crítica, ensaio, reportagem, fábula, paráfrase; desde que de acordo com critérios pautados pelo bem-estar. A rigidez ficava com o formato, cinco parágrafos com 700 toques cada. Às vezes um pouco mais, nunca menos de 3500 caracteres. Diz a propaganda que o importante é ter estilo. Quem não tem, inventa um, digo eu. Ou faz da ausência o seu.

Na impossibilidade de farejar minha obra no papel (porque nunca me mandaram um exemplar!), agarrei-me à internet. Pelo menos no site ela aparecia, ao lado de uma caricatura tirada de uma 3x4 de quando eu era jovem. Aí, resolveram que só aos assinantes do jornal seria permitido acessá-la. Entre partir para a ignorância (porque nunca me mandaram uma senha, porra!) ou montar um arquivo de fácil consulta, preferi criar o Fiambres Gasperin. Do envelope que o carteiro não me entregou à democratização via digital, a coluna me viu aposentar a carteira assinada, montar uma editora, ter uma filha, escrever um livro, voltar para Floripa e adotar a informalidade. Não me queixo. Sempre me considerei um autor privilegiado: conheço todos os meus leitores pelo nome. Eles são o pretexto para a minha vaidade de continuar.

Emersong, e mais um ocaso jornalístico, originalmente relatado no Fiambres Gasperin (via Matias).

Julio Daio Borges
4/5/2005 às 19h16

 

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