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Domingo, 12/10/2014
O voto na utopia (ou não)
Julio Daio Borges

Em seu curso de Filosofia Política na USP, lembro que o professor Renato Janine Ribeiro começava por Maquiavel e pelo "Príncipe".

Talvez para contrapor ao hiperrealismo de Maquiavel, na sequência o professor emendava com a Utopia, de Thomas Morus.

Steven Pinker, em seu Tábula Rasa, divide as visões de mundo em duas: uma utópica, ou "de esquerda"; outra, "trágica", ou "de direita".

Utopia, como o professor Renato ensinava, é o "não lugar". Basta lembrar de "topografia", que é a "escrita" do lugar. "Topos" é grego.

Utopia, por definição, não existe. Lembro do presidente Fernando Henrique Cardoso falando, durante o seu governo, da "utopia do possível" - uma contradição em termos.

Mas o livro de Morus também é. Porque descreve uma cidade. Se é um "não lugar", como pode ser uma cidade? Renato Janine Ribeiro ressaltava o aspecto arquitetônico, ou melhor, urbanístico, da obra.

Me lembra agora a Cidade de Deus de Santo Agostinho. O Paraíso também é um "não lugar", porque não está na Terra. E o "paraíso terrestre", para o cristianismo, é uma contradição em termos.

Tudo isso para falar que sempre me impressiona o voto na utopia. E não só no Brasil. Barack Obama encarnava, em sua primeira aparição, a "utopia" de um presidente negro nos Estados Unidos. Um candidato com a marca da mudança. "Change".

Mudança virou a palavra-chave também nas nossas eleições. Até a candidata do governo usa o termo. E uma de suas plataformas é, justamente, o "Muda Mais". Marina Silva queria mudar toda a política (descartando a "velha" em nome de uma "nova"). E Aécio Neves se coloca como a "mudança segura".

A única constante é a mudança. Heráclito, um filósofo pré-socrático, cunhou essa máxima. Adotada largamente pela turma do Vale do Silício. Veja como soa bem em inglês: "Change is the only constant".

O fato é que a vontade de "mudar" é tamanha que as pessoas se agarram a uma candidata que mal consegue costurar acordos, demora toda a vida para decidir, ficando historicamente em cima do muro... No fundo, alguém que não sabe... fazer... política?

Ou então outros eleitores preferem se agarrar, com todas as suas forças, a um governo que está demoronando. Simplesmente porque acreditam que seu partido foi "eleito", "ungido" - com seu respectivo Moisés, para libertar o povo da opressão...

No primeiro caso, a candidata politicamente inapta representa, justamente, a "pureza" na política. Os bons sentimentos (de que o inferno está cheio). "Ela é tão boa, tão santa, que não consegue nem lidar com as velhas raposas", condescendem.

Já a presidente-candidata, agora, se diz vítima de "golpe". Golpe é quando se rompe com a ordem vigente. Eleição não é golpe. É democracia. É vontade popular. Aliás, "cracia" é poder e "demo" evoca... povo.

Também se fala bastante em Junho de 2013. Nas tais manifestações. Dizem que elas não estariam, devidamente, refletidas nas urnas...

Talvez devêssemos ler mais Maquiavel. Chamá-lo de "maquiavélico" é muito simplista. Maquiavel fez o contrário da teoria política convencional: ele não imaginou um "sistema", ele estudou "principados" (governos), na História, e tirou conclusões.

Maquiavel, anacronicamente falando, não tinha preferência por ideologia nenhuma. Ele simplesmente observava e apontava o que funcionava mais. O que não funcionava, ele justificava por quê, e desaconselhava.

Olhando para o nosso espectro político, qual candidato está mais perto das lições de Maquiavel (no bom sentido)?

Post-scriptum
Estou lendo "O Príncipe" pela terceira vez. Recomendo a tradução da Martins Fontes. Que preserva os termos "virtù" e "fortuna", no original.

A edição da Penguin Companhia tem participação do presidente Fernando Henrique Cardoso. Por incrível que pareça, não acrescenta muito.

O presidente, aliás, participou de um debate sobre "O Príncipe" com Salman Rushdie - onde disse que entendia mais que Maquiavel do assunto, com a justificativa de que Maquiavel nunca fora príncipe e ele, FHC, fora...

Presidente, eu gosto muito de você, mas, desta vez, você exagerou.

Julio Daio Borges
12/10/2014 às 11h13

 

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