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Terça-feira, 17/5/2005
Como vai o nosso romancier?
Julio Daio Borges

Em 1939, quando eu estava escrevendo um livro, encontrei na rua um professor que me fez uma pergunta difícil. Ele, Dr. L., era um erudito europeu, com uma cultura imensa. Diante da calvície crescente, ele resolvera raspar a cabeça; conhecia o mundo da cultura elevada; era severo, e em princípio sorria apenas porque era o momento de sorrir, não porque estivesse achando alguma graça. Lia livros enquanto andava ligeiro pela rua, no meio do tráfego, tomando notas em latim taquigráfico, empregando um sistema que ele mesmo criara. Por trás de seus óculos redondos, de aros dourados, ergueu rugas de inquisitiva polidez na testa e indagou: "Ah? Como vai o nosso romancier?" O romancier não ia lá muito bem. As sensações mal-educadas do romancier se apaixonavam pelo mundo, mas ele se via apegado à tolice e à estreiteza de espírito quanto à grandeza. Sua singularidade não era bem-vinda e isto fazia seu coração doer. Que ele soubesse, era o único romancier em regime de dedicação exclusiva em Chicago (afora Nelson Algren), e sentia a estranheza (às vezes lhe vinha a idéia de amputação) da sua situação. Vivia zangado, era obstinado. Com suas idéias de beleza, harmonia, amor, bondade, amizade, liberdade etc., ele se encontrava inteiramente isolado dos outros. Detestava o professor L. pelo seu sarcasmo e por ter razão. O romancier estava dans la lune. E o professor L.? O professor possuía um título excelente de uma universidade européia. Tinha posição, um escritório e alunos; tinha um apartamento - tinha status. Em seu escritório havia uma cama dobrável, onde se deitava e fazia anotações em seus muitos volumes de Toynbee e Freud, e recortava artigos de jornais de todo o mundo. Em cinco ou seis línguas, ele estudava história, psicologia e política. O que causava mais inveja era a sua capacidade de apreender o mundo real, sua completa compreensão de Hegel, Marx, Lênin, seu minucioso conhecimento da sociedade e da história da civilização. A minha relação com a sociedade era enevoada, dúbia. Eu também supunha compreender, mas segundo as minhas condições peculiares. Solitário, eu estava misticamente ligado a tudo isso em termos unilaterais. No geral, eu parecia caminhar pelas ruas meditando nos meus próprios assuntos. De certa forma, eu me achava em uma missão esotérica. Em missão especial, como dizem no exército, mas arrebatado por aspirações e simpatias poderosas e vívidas, ávido de união, de amplitude, convencido pelas entranhas, pelo coração, pelos órgãos sexuais e, em certas ocasiões, pela idéia muito clara de que eu tinha algo importante a dizer, expressar, transmitir.

Saul Bellow, em 1977, em Tudo faz sentido (que o FDR - meu vizinho de blog lá no Lisandro - me deu em 2002, mas que li só agora).

Julio Daio Borges
17/5/2005 às 12h08

 

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