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Sábado, 17/9/2005
São Francisco Xavier III
Julio Daio Borges


(Começa aqui...)

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Só no terceiro dia foi realizado o sonho da Carol de andar de bicicleta. E pegamos um belo de um desafio: ir até a cidade e voltar de bicicleta. Da pousada Kolibri até o centro de São Francisco Xavier, como foi dito, não era tão grande a distância (6 Km), acontece que muitos dos caminhos eram de terra, alguns bastante íngremes e sem nenhuma iluminação (o que nos obrigava a voltar antes de escurecer). A idéia, como também foi dito, era realizar de uma vez todas as atividades que envolviam o centro de São Francisco Xavier, já que no dia anterior havíamos nos concentrado nos arredores da pousada Kolibri (de carro e a pé).

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Apesar de termos seguido no sentido mais tranqüilo - da pousada para o centro era praticamente uma seqüência ininterrupta de descidas -, passei por alguns apertos com o medo de que o freio da minha bicicleta não respondesse, principalmente o traseiro. Parecia que quanto mais inclinada a descida era, mais força eu tinha de fazer com o pulso, apertando de verdade, para brecar; e parecia também que, de repente, para uma freada brusca, do pneu traseiro, a bicicleta derrapava levemente para o lado, anunciando que, se eu insistisse muito, ela não hesitaria em me derrubar... É possível que tenha se tratado de temor psicológico; e é provável que a minha imperícia tenha contribuído para a insegurança geral (visto que a Carol ia na frente, bela e formosa).

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Na noite anterior, o "Pinga" havia anunciado no Boteco do Rao que ocorreria um encontro de violeiros na praça principal de São Francisco Xavier. Como havíamos nos divertido com suas traquinices violeiras, junto à cantora Hilda, marcamos de aparecer lá. Os horários divergiam um pouco: o "Pinga" falava em 9h30 e o Rao em 11 horas (devíamos ter perguntado para a Fred, da Kolibri, porque o senso de pontualidade dos dois não era exatamente... alemão; ou britânico). Em algum momento dentro desse intervalo, descobrimos que eles se exercitavam em frente à Casa de Cultura Cassiano Ricardo.

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Meu conhecimento de viola caipira, e de seu repertório, eu admito, é limitado (para não dizer "limitadíssimo"). Custei a pescar as canções. "Chico Mineiro"? "Menino da porteira"? A única que consegui guardar, nesse momento de distração - eles mesmos começavam e não terminavam quase nada (ou faltava letra, ou faltava ensaio), era mais uma confraternização... - foi "Que me importa, que me importa/ O seu preconceito, que me importa...". Brincadeiras à parte, foi bom ver o encontro de gerações (eu não havia assistido ainda a Dois Filhos de Francisco mas poderia, tranqüilamente, fazer a relação). Aproveitamos e visitamos, eu e a Carol, a tal Casa de Cultura Cassiano Ricardo e, de lambuja, avistamos o divertido fusca do "Pinga".

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A próxima parada foi o Jardim das Ervas da Maly Caran. Todo mundo a anunciava como uma espécie de bruxa (no bom sentido), uma "druida" (se a palavra existisse no feminino). Infelizmente, quando chegávamos, ela saía (para almoçar, e não voltava mais). Tratamos com suas filhas: Tatiana e Tayra; por coincidência, irmãs do Sereno da noite anterior (chef do Rao). Muito simpáticas e profissionais, mostraram tudo. (Alguém já havia contado que elas fizeram das poções da mãe um verdadeiro negócio, porque a Maly queria mesmo era pesquisar e não, necessariamente, explorar a coisa de forma comercial). Soubemos que a mesma Maly foi jornalista, muito amiga (até hoje) da Joyce Pascowitch, que se embrenhou na pesquisa (e no estudo) das ervas, concebendo óleos, xampus, sabonetes, sais e outras químicas (todas naturais) que anteciparam a Lush em muitos anos. Os testes com os itens adquiridos estão em andamento (os resultados vocês conhecem já já - o Conselheiro também testa...).

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Logo em frente, estava a tão anunciada Biblioteca Solidária do Sidnei. Ele também era elogiadíssimo de alto a baixo por toda a gente. Não foi difícil descobrir por quê. O Sidnei realiza o que ele mesmo classificou como uma missão. Formado em biblioteconomia em Londrina, com desejo de retornar à sua cidade natal, aspirava trabalhar na biblioteca pública de São Francisco Xavier. Rechaçado pela prefeitura, resolveu levar adiante o projeto - mas com seus próprios meios. Conseguiu a garagem do pai, recebeu doações, providenciou estantes e, à sua maneira, inaugurou a Biblioteca Solidária de São Francisco Xavier. Ganhou pelo feito, e ostenta felicíssimo, o terceiro lugar no concurso estadual de bibliotecas da Casa das Rosas.

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O mesmo Sidnei se emociona com seus "clientes": crianças pobres que chegam sem nem ter o que vestir e que pedem a ele um livro - para ler, para realizar trabalhos escolares (as que estudam) ou para ter simplesmente alguma ocupação grátis. O Sidnei diz que, por isso, seria impossível cobrar da população uma mensalidade. Seu sonho é enquadrar esse projeto nas leis de incentivo, estruturar melhor a biblioteca (alguns dos livros, tamanho o volume de doações nos últimos anos, já estão sem lugar) e poder viver dignamente disso (hoje ele praticamente mora na Biblioteca Solidária e é procurado, dia e noite, pelos leitores que não conseguem esperar). Apesar de todo esse amor, o Sidnei não é um leitor inveterado, mas está fazendo mais pela leitura do que qualquer governo em décadas de promessas irrealizadas.

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Nosso almoço, meu e da Carol, foi um convite do Yoshi, restaurante japonês. Antes de descrevê-lo, um parêntese. Topamos, mais uma vez, com o simpático casal Debora e Luiz Fernando - e, não agüentamos, fomos falar com eles. Era muita coincidência: no primeiro dia, na pizzaria Caboclo; no segundo dia, no Boteco do Rao; e no terceiro dia, agora, no restaurante japonês (!). Trocamos cartões e eu também dedico uma parte desta narrativa a eles. Continuando... O Yoshi é de propriedade do casal Geisa e Thompson, ela descendente de japoneses de São Paulo, ele, de chineses; ele é o shushiman e ela, a hostess. Os dois são muito amáveis. Thompson dá aulas ainda por todo o Vale do Paraíba, através do Senac, levando a arte do sushi para o interior. O restaurante deles era outra dica imperdível da Fred. Não à toa. Depois de rolinhos do Vietnã, mandei um combinado, a Carol, um yakisoba de legumes, e fechamos com uma extremamente recomendável - e tailandesa - sobremesa à base de gengibre e banana.

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Outros louvados, pela comunidade, em prosa e verso eram os artistas Vera e Chicão, da Oficina Vagalume. Deslocamos nossas bicicletas em direção à saída da cidade e, praticamente em frente à pizzaria Caboclo, lá estava a Vagalume. Quem nos recepcionou, desta vez, foi John Lennon. Sim, John Lennon, um dos cães labradores brancos criados, e muito amados, pelo Chicão e pela Vera. Também, logo mais, sua esposa, Yoko Ono (igualmente, claro, uma labradora branca). Passamos, eu e a Carol, um bom tempo perdidos entre cerâmicas e vidros, admirando. Vera contando a história do encontro com Chicão; Chicão contando a saga desde que era professor de História em BH até que desenvolveu a técnica de fusão e de tiffany, passando pela temporada deles na Itália, mais precisamente em Solano, na escola Pandora. Foi tão funda a impressão, causada em mim e na Carol - ...e aquela propriedade maravilhosa deles -, que pensamos, talvez, em pegar, também, o primeiro avião para Solano (e nos aculturar).

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Já voltando, passamos, rapidamente, antes que o sol descesse, pela Bixudumatu, a loja de luminárias de papel do Maurício. Lá encontramos novamente a Fred, nossa anfitriã. No dia seguinte, ela perguntaria: "E, aí? Conheceram mais alguns loucos de São Francisco Xavier?". Quem cruzava a rua, naquele mesmo momento, era o Rao - que saudava, por sua vez, a Tayra, do Jardim das Ervas da Maly. De repente nos demos conta de que, apesar de todo o cosmopolitismo desses atores, estávamos - pelo contato e pela geografia - numa cidade do interior... A volta, propriamente dita, de bike foi um pouco mais custosa. O tal instante inescapável de "Mens sana in corpore sano" (acontece em todas as viagens): a inclinação aumentava, a bicicleta derrapava, as pedras atrapalhavam, a estrada de terra não ajudava... Joguei a toalha: empurrei. A Fred nos consolaria mais tarde, pois nem seu filho - muito mais bicicleteiro e muito mais jovem - era capaz de superar aquela subida final, em que já se via a sede da pousada. Tudo bem, eu e a Carol - por nossa ousadia esportiva - já estávamos salvos e perdoados.

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A noite seria em grande estilo no Photozofia, a verdadeira razão da nossa vinda, o tão anunciado Encontro de Cordas da Mantiqueira, o respectivo Festival de Música. Se vocês não se importam, eu prefiro fazer a análise estética depois (num Digestivo próximo)... O que mais nos impressionou, fora toda a perfeição do Encontro, fora toda a musicalidade (que nós, paulistas restritos, nem imaginávamos), fora o banquete gastronômico (no meu caso: brusquetta, penne e mousse), foi o empenho e a dedicação da Patrícia e do Sandro. Uma verdadeira profissão de fé em prol das artes, numa iniciativa aparentemente sem paralelo num lugar do porte de São Francisco Xavier. Admiramos Fernando Pereira e Alexsandro Oliveira, rimos e admiramos ainda mais Levi Ramiro e Magrão - mas lembraremos sempre que nada disso teria acontecido sem a Patrícia e o Sandro...

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(Continua aqui...)

* fotos de Ana Carolina Albuquerque

Julio Daio Borges
17/9/2005 às 17h46

 

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