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Segunda-feira, 30/1/2006
Notas de um franco-atirador
Fabio Silvestre Cardoso

Na cabeça de muitos leitores, a figura de um crítico cultural parece, no mínimo, controvertida. Explico melhor: segundo o senso comum, na fauna que é o jornalismo, o crítico de cultura pode ser ou aquele fidalgo erudito, que pretende assumir um traço elitista por natureza, como se jamais cedesse às paixões mundanas, ou também pode ser aquele personagem hype, ultramoderno, absolutamente descolado e despojado, e que abomina todo e qualquer conservadorismo. É como se existisse, de fato, uma diferença conceitual: o primeiro crítico se cercaria de seu conhecimento do mundo a partir dos clássicos; já o segundo modelo enxergaria a salvação do mundo na celebração do pop.

A distinção fica mais perceptível quando se observa alguns exemplos. O principal: o crítico de cultura jovem, em tese, jamais desancaria um ídolo pop de sua época. Com efeito, é o que se vê em muitas reportagens, perfis e críticas mundo afora. Poucos fogem do consenso. Uma exceção a essa máxima é o inglês Tony Parsons, como se lê na recente coletânea que a editora Barracuda lançou em livro: Disparos do front da cultura pop. À primeira vista, e sempre de acordo com o raciocínio exposto inicialmente, Parsons joga para a multidão, tecendo loas aos ídolos da música e ao corroborar a mudança de comportamento dos jovens. Parsons, no entanto, frustra essas expectativas. Em vez de dar adeus às armas, ergue com veemência a metralhadora giratória e "atira" com contundência opinativa.

A obra se divide em cinco partes, para dar conta da múltipla e variada carga de opiniões e juízos do autor sobre os mais diversos assuntos. De música, talvez sua maior especialidade, ao comportamento masculino, passando por considerações sobre futebol e perfis de escritores. Sim, o leitor acertou se imaginou a impossibilidade de alguém dominar todos esses assuntos. Ocorre que o texto de Parsons se destaca muito mais por colocar em dúvida o senso comum, as opiniões consagradas e o mainstream do que por emitir uma interpretação teórica (quiçá científica) sobre cada qual dos temas que se mete a escrever. Em outras palavras, o que caracteriza o texto do jornalista inglês é o olhar enviesado e cético diante de todos os assuntos que se propõe a analisar. Tudo isso, claro, envolto de muita ironia.

Bom exemplo disso é a seção de Polêmicas, parte em que Parsons decide explicar porque as mulheres não devem se embriagar. Para ele, nesse caso, os prejuízos são claros: "beber faz as pessoas falarem alto, as torna repugnantes, sentimentais, autocomiserativas e burras. E é claro que a maioria das mulheres já é assim completamente sóbria". Ou quando ele ironiza o culto mórbido em torno dos restos mortais de Jim Morrison, no cemitério Père Lachaise, em Paris: "No túmulo, o clima é tão respeitoso quanto um arroto. (...) A maioria dos visitantes do túmulo nem estava perto de nascer quando Riders on the Storm, último single do Doors, foi lançado postumamente". Mostra, afora isso, que o feminismo de saia justa não detém o monopólio da sensibilidade analítica e jornalística: "desempenho sexual não é como tocar piano não é como tocar piano (...) Em algumas circunstâncias, um homem pode alcançar a Nona Sinfonia de Beethoven. E em outros dias o mesmo homem só consegue tocar o básico".

Em alguns trechos, os disparos de Tony Parsons podem parecer extremamente cruéis e, até mesmo, desleais. Não se trata, porém, de maldade ou fundamentalismo opinático. Isso porque na fogueira das vaidades que é o jornalismo cultural, a metralhadora giratória de Parsons exerce a ótima função de provocar o debate.

Fabio Silvestre Cardoso
30/1/2006 às 17h00

 

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