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Sexta-feira, 5/5/2006
Carta ao pai de ninguém
Julio Daio Borges

Quando se colocar à mesa com os seus, veja que estou ainda por ali, entre os sorrisos dos pequenos. Eu desdobrei os guardanapos todos, eu cerrei as cortinas por causa do sol que tanto te ofuscava, eu preparei tua comida, mais uma vez. Quando for essa hora de dividir as sobras do dia, veja que ainda tenho os cabelos caindo pelos ombros, que ainda não fui ao médico como prometi, meus olhos gastos sem poder me ligar ao teu fio condutor, teu sorriso que parece pender para o lado dos barcos que nunca chegaram, da vida que nunca tivemos, dos peixes que nunca comemos, de adiarmos tanto o dia de ser simples, o dia de sentir o perfume sujo da ferrugem comendo nossos pelos. Todas as coisas me guardam, eu imperecível; passe seus dedos pelas coisas espalhadas ao teu gosto, sala, quarto, fotos de cor e sem cor, teias, cacos, pregos, cordas, contas a pagar, os gatos, o tapete; passe seus dedos por todas as coisas aborrecidas, passe os dedos e guarde-os bem nos bolsos das calças muito compridas, que não tive tempo de fazer sua bainha como havia dito, eu sempre prometendo, você sempre aguardando, mas veja agora eu bem aqui, diante da tua porta, eu não entro, eu não posso. Eu bem aqui, diante da tua porta, não sei mais como colocar pé diante de outro pé e continuar, olhando teu sorriso que pende para um lado, o lado dos barcos, dos peixes, dos sais, dos corações desfeitos imperfeitos para sempre, desencorajados.

Carol Custodio, em As Cartas de Arena, que linca pra nós.

Julio Daio Borges
5/5/2006 às 09h45

 

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