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Segunda-feira, 12/6/2006
Lobo Ex Homine
Julio Daio Borges

Neves foi ao parque no domingo. Êta programa bobo. Não fazia parte do time dos corredores de fim-de-semana. Do jeito que fumava não tinha fôlego. Também não ia fazer churrasco com a família, mulher e filha tinham ido passar o fim de semana na praia. Estava só, tinha que se misturar à multidão. Na sexta e no sábado percorreu o circuito de bares que costumava ir quando moleque. Quando moleque era aos 30 e poucos, porque agora se a filha tivesse juízo logo o faria avô.

Era um belo dia de sol. Passeou pelo parque cheio de domingueiros. Cachorros, bicicletas, patins, crianças sozinhas, tudo que era proibido transitar na pista para pedestres andava ali. O sol estava tão quente, sentou numa cadeira no bar e pediu cerveja. Ficou bebendo até o sol se pôr.

Escureceu de repente. Veio um vento de chuva, sacudiu as pinhas das araucárias. Como se fosse a figuração dum filme e tivesse combinado a saída, todo mundo fugiu do parque. Os garçons vieram fechar os guarda-sóis, guardar mesas e cadeiras. Ele só podia pagar a conta e ir embora.

Como é que o mundo todo tinha evaporado assim num piscar de olhos, estranhou. Atrás dele só um velho de muleta mexia nos cestos de lixo. Neves achou o fusca parado no estacionamento em frente ao parque.

Perto do fusca, o cão. Um pastor negro, olhos como um facho de lanterna. Quando Neves entrou no carro, o cão uivou.

Ele não gostava de cachorro. Principalmente um como este, que uivava de bobeira. Ligou o carro, saiu do parque. No primeiro sinaleiro viu que o animal o tinha seguido. Merda, praguejou. Vai ver estava com fome.

Acelerou, perdeu de vista o pastor. Chegou em casa, encontrou a mulher e a filha voltando da praia. A estrada é um horror, uma fila quilométrica, reclamava a mulher, avermelhada do sol. Perguntou, mal-humorada, o que ele havia feito no fim-de-semana. Ele disse que tinha saído, encontrado uns amigos, ido ao parque. Ao parque, você!, ironizou. Há muito tempo só conversavam aos coices. Ele não queria brigar, deixou pra lá.

Na hora de dormir, ouviu um uivo. Foi à janela, espiar se era. Era. O pastor negro como piche sentado no quintal. Neves cobriu a cabeça com o travesseiro, tentou dormir. Não adiantou. O uivo do pastor atraiu outros. Noite adentro seria uma lamentação. Neves achou a espingarda de chumbo de matar passarinho dos tempos de guri, carregou uma porção de sal, atirou. Acertou a orelha, as patas, as ancas. O cão ganiu e fugiu.

Não enche mais, pensou. De manhã viu o corpo esparramado na calçada em frente. Mexeu o focinho com a ponta do sapato, estava morto mesmo. Não devia ter carregado tanto sal. O bicho não tinha marca de sangue. Enterrou o cadáver no jardim.

No jornal que trabalhava, Neves sentiu uma pontada no peito. Não era a primeira vez que matava bicho, mas tinha sido sem querer. Passando o dia, esqueceu.

Voltando pra casa, a mulher veio, aflita. Na porta da garagem, o cão negro, sujo de terra, rosnava, avançando contra ele.

Marília Kubota, também no Cornélio.

Julio Daio Borges
12/6/2006 às 08h38

 

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